Por Felipe Lindoso
A tradução é um grande fator de consolidação e expansão das línguas literárias. Mesmo depois de sua consolidação – geralmente por um processo político, mas que inclui em muitos casos a cristalização em uma grande obra literária – o enriquecimento dos idiomas sempre se dinamiza com a polinização feita pelas traduções. No caso das línguas neolatinas, deu-se a necessidade de traduzir os textos originários do latim, que em muitos casos já eram traduções do grego, e mais ainda, traduções feitas através do árabe. No caso do inglês e do alemão as respectivas traduções da Bíblia foram fator importantíssimo na cristalização dos respectivos idiomas. As traduções de Lutero e a do Rei Jaime introduziram e consolidaram muitas palavras e expressões que, paulatinamente, se tornaram comuns no alemão e no inglês.
No decorrer da história, algumas circunstâncias políticas, econômicas e sociais fazem que, em um determinado período, alguns idiomas assumam um papel predominante. No início do mundo moderno o português e o espanhol assumiram esse papel, e espalharam vocábulos pelo mundo afora. Mais tarde foi a vez do francês, a língua da diplomacia, talvez a primeira – depois da eliminação do latim – a se tornar “língua franca” no chamado Ocidente. Finalmente o inglês, impulsionando primeiro pelo Império Britânico e depois pela preponderância econômica e militar dos Estados Unidos, assumiu esse papel.
Essa preponderância aparece de modo muito concreto no mundo editorial, evidenciando-se sob duas formas. Em primeiro lugar, o inglês é o idioma de origem da imensa maioria das traduções feitas para qualquer outro idioma. Em segundo lugar, o idioma inglês – e particularmente o que se expressa nos livros publicados nos Estados Unidos – é o que menos recebe traduções.
Chad Post, professor da Universidade de Rochester, nos Estados Unidos, mantém um site chamado “The Three Percent Problem”. O nome vem da avaliação feita por ele que ao norte apenas três por cento das publicações nos EUA são traduções, e que isso estreita a visão do mundo dos americanos. Chad Post é um batalhador pelo aumento das traduções nos Estados Unidos. Há alguns anos o secretário da Academia Sueca também “acusou” a literatura estadounidense de provinciana e limitada por não receber a influência da literatura universal.
À parte a ranhetice do sueco, o fato é que, não apenas na literatura, mas também nas ciências, o predomínio do inglês é avassalador. Tão grande que gera reações bem características em diferentes países, geralmente bradando por um apoio especial para suas literaturas e na promoção dos respectivos escritores. E os norteamericanos acabam se encerrando em sua autossuficiência.
A UNESCO mantem um arquivo chamado “Index Translationum”, desde 1932. A partir de 1979 as informações foram colocadas online e servem de base para algumas observações interessantes. Recentemente estudei essas informações em função de um projeto em que trabalho no Itaú Cultural, o “Conexões – Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira” (www.conexoesitaucultural.org.br), que pretende montar um banco de dados com informações de pesquisadores, professores e tradutores da literatura brasileira no exterior. Já temos mais de 200 mapeados e continuamos crescendo, e vários quadros estatísticos que podem ser vistos no site.
A análise de alguns dados do Index revelou-se interessante. Dos cinquenta autores mais traduzidos no mundo, segundo o Index, nada menos que vinte e dois são de língua inglesa, seis são alemães e franceses, quatro russos, um polonês (João Paulo II), um grego (Platão), uma sueca (Astrid Lindgren), um checo (Kafka), um dinamarquês (Andersen) e um “coletivo”. Ou seja, 44% do total são de língua inglesa. É muito para um só idioma.
Entretanto, dos vinte países que mais publicam traduções, os Estados Unidos estão em 11º. lugar e a Inglaterra não está no grupo. E, considerando o tamanho da produção editorial e a população dos EUA, essa posição é sintomática da falta de interesse pelo que se escreve no resto do mundo. O país que mais traduz é a Alemanha, o Brasil está em 12º. lugar, logo depois da China. Esses números dizem respeito a todos os tipos de tradução, das ciências humanas e sociais às ciências naturais e exatas, e à literatura.
As informações confirmam a percepção de que os Estados Unidos são “exportadores idiomáticos” muito maiores que importadores. E a Alemanha absorve gulosamente em seu idioma uma boa parte do que se escreve pelo resto do mundo.
As recentes iniciativas da Biblioteca Nacional de melhorar o programa de bolsas para a tradução podem contribuir um pouco para aumentar a presença brasileira (e, por conseguinte, do português), no panorama. Mas certamente não vão alterar o quadro geral.
Ao manusear os questionários enviados pelos mapeados do Conexões percebemos também um problema ligado a esse intercâmbio idiomático: nosso mercado editorial é muito pobre em dicionários. Nos últimos vinte anos tivemos a publicação no Brasil de dois importantes dicionários do português, o Aurélio e o Houaiss, além do Dicionário da Academia de Ciências de Lisboa (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea). Todos referentes ao português contemporâneo, sem nenhum que tenha um alcance histórico e filológico que mesmo de longe possa ser comparado ao OED – Oxford English Dictionary (mas esse, epítome da lexicografia, dificilmente será algum dia emulado).
Na área dos dicionários técnicos a situação é mais precária. Temos a Enciclopédia Agrícola Brasileira, projeto da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, que se destaca nesse panorama. Existem, é claro, vários dicionários especializados de direito, economia, ciências naturais, mas há uma queixa constante de tradutores a propósito da insuficiência de nossa produção lexicográfica. Os dicionários de gíria e expressões idiomáticas são quase todos folclóricos, além de limitados, produzidos mais a partir de uma perspectiva bairrista do que com rigor científico.
O problema é particularmente sensível na área dos dicionários bilíngues, onde a presença daqueles produzidos em Portugal é muito maior que a dos brasileiros.
A produção de dicionários é uma tarefa cara, exige investimentos consideráveis e de longo prazo. No mercado editorial, acrescente-se agora a necessidade premente de que sejam produzidas versões eletrônicas, e essas têm sido vítimas implacáveis da cópia não autorizada.
A elaboração de dicionários nas diferentes áreas técnicas e também de dicionários bilíngues merece uma atenção específica de políticas governamentais, o que até hoje não existiu.
Pior ainda, nos últimos anos – em particular entre 1994 e 2002 – houve um recuo do Itamaraty na manutenção dos Centros de Estudos Brasileiros, onde se dão cursos de português e se desenvolve – nos que sobraram – uma importante ação cultural. Foram também encerradas cátedras de português em algumas universidades europeias e norte-americanas onde existiam.
Tudo isso contrasta com a ação do Instituto Camões, de Portugal, e o Instituto Cervantes, da Espanha. Duas instituições que, apesar das recentes restrições orçamentárias, principalmente em Portugal, aplicam uma política proativa de promoção do idioma, de estímulo ao seu ensino e da tradução de seus autores. Com o devido respeito à lusofonia, não podemos ficar dependentes dos portugueses para a difusão do idioma, e urge tornar real a antiga promessa da criação do Instituto Machado de Assis para a promoção do português falado no Brasil e de nossos autores. Essa é uma tarefa à qual não podem se furtar o Itamaraty, o Ministério da Cultura e o Ministério da Educação.
Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, Diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil Pode Ser um País de Leitores? Política para a Cultura, Política para o Livro, pela Summus Editorial. Publicou este texto no Publishnews em 27 de setembro de 2011. Site: http://oxisdoproblema.com.br/