Por Rosangela Dias
Preciso escrever. Duas laudas são necessárias. Abri meus
e-mails, em um deles constava o pedido, quase ordem: “para o curso do professor
fulano será preciso trazer duas laudas escritas”. Nenhum tema proposto, como
nos vestibulares ou aulas de redação. Nem mesmo especificações do tipo fonte,
corpo, espaçamento, enfim desespero total e criado por mim. Poderia não ter
feito a inscrição, procurado saber antes quais os requisitos necessários para o
curso. Mas fui tomada por um impulso e agora?
Escrevi na adolescência, talvez os hormônios e as dúvidas
existenciais ajudassem. Parei porque tive que me empenhar nos estudos, passar
no vestibular, procurar emprego, trabalhar, agradar ao chefe, fazer carreira,
buscar o amor, casar, procriar, cuidar da casa, do marido, dos filhos, cultivar
amizades, acompanhar os rumos da política, tomar decisões, frequentar academias
e salões de beleza, viajar etc. Todas atividades fundamentais.
Após fazer tudo isso e mais algumas coisas, aposentei-me,
separei-me do marido, casei os filhos e só voto nulo. Decidi voltar a escrever.
Inscrevi-me em curso, este que agora me ordena a tarefa. Fui professora
universitária de antropolgia. Preparei minhas aulas e produzi alguns artigos,
não muitos, todos sob imposição. Dizia que as limitações acadêmicas me inibiam.
Desejava era fazer ficção, ensaios, crônicas, contos, mas nada disso fiz,
devido aos afazeres elencados acima. Será mesmo? Provavelmente não eu tenha
talento.
Escrever é difícil, e sempre colocava esta assertiva para
meus alunos. Indícios históricos confirmavam minha tese; afinal a espécie
humana surgiu há milhares de anos, mas somente a partir do século XIX, graças
ao louco do Napoleão – primeiro herói moderno -, a ideia de que todos os homens
deveriam saber ler e escrever vingou entre os humanos. Mesmo assim leitura e
escrita não são atividades que façam parte do repertório de 100% da chamada
humanidade.
Existiriam regras que facilitassem a chamada escrita
criativa? Alguns autores falam de disciplina. Trancam-se em seu escritório durante
toda a manhã e de lá sempre saem vitoriosos com laudas redigidas. Outros fogem
das cidades, vão para a placidez dos campos ou das praias desertas de inverno e
terminam romances, compõem poesias, produzem contos e novelas. Há os que sentam
em escadas de hotéis decadentes, como Patti Smith escrevendo nos corredores do
Chelsea em Manhattan, ou se acomodam em bancos de praças fazendo anotações em
molesquines. Certamente desligar a televisão, os telefones fixos e celulares e
não se preocupar em ler os jornais pela manhã ajude substancialmente. Drogas
ajudariam? Absinto, LSD, destilados, maconha, Skank? Tomo um chá.
Muitos autores afirmam sobre o martírio que é escrever e o
sofrimento maior que seria não fazê-lo. Quando estou a caminho de algum lugar,
geralmente sentada em ônibus públicos, as ideias brotam, surgem, germinam aos
borbotões. Personagens instigantes surgem em minha frente, tramas mirabolantes
quase se materializam, e sou tomada por questões existenciais poderosas e
pertinentes. Entretanto, quando me sento em frente ao computador, nada sai.
Lembro que preciso ligar para minha filha, das contas a pagar, coisas no banco
para serem resolvidas e filmes que preciso assistir. Levanto-me e ando de um
lado para o outro à espera da chamada inspiração e absolutamente nada.
Acho que no momento o melhor seria cancelar a inscrição no
curso e evitar o mico de aparecer sem nada escrito. Posso oferecê-lo a algum
amigo que queira enveredar pelo ramo literário ou até mesmo deixar o dinheiro
como contribuição voluntária para instituição que propõe tarefa tão
interessante que é orientar a quem deseja ser escritor. Outra solução seria
escolher outro curso e desistir desse. Mudar de ideia faz parte do universo de
pessoas saudáveis, imaginativas e curiosas.
De repente entro em pânico. Percebo que se um texto é pedido
é porque será lido. Quem cometeria esse ato? Somente o professor (facilitador)
do curso? Seria lido em voz alta, para todos ouvirem? Eu terei que lê-lo em voz
alta, como em concursos públicos para professor universitário? Quase enlouqueço
e me vejo em versão tropical de cena do filme Iluminado. Jack Nicholson
preenchendo páginas e páginas de um texto sem nexo, me parece que repetindo as
mesmas palavras ou frases em todas as páginas. Seria isso? Poderia pegar o DVD
e confirmar, preciosismo de cientista pesquisadora? Maneira de adiar a tarefa
de escrever?
Quantas palavras seriam necessárias para duas laudas? Posso
utilizar a técnica “recorte e colagem”. Pegar parágrafos de vários autores e
produzir um conto totalmente Frankenstein e chamar de literatura punk. Outra
idéea surge. Pegar um texto e substituir as palavras por sinônimos, talvez
antônimos e criar um texto genuinamente meu. Tais artimanhas, se realizadas, me
levarão não para o temor de produzir má escrita e sim para a dúvida: serei
descoberta? Que tipo de crime contra a literatura e a arte posso cometer com
estes atos? Valeria a pena entrar no Google e buscar informações sobre plágio,
antes de amadurecer a ideia e partir para a ação?
Preciso escrever.