terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Preciso escrever


Por Rosangela Dias

Preciso escrever. Duas laudas são necessárias. Abri meus e-mails, em um deles constava o pedido, quase ordem: “para o curso do professor fulano será preciso trazer duas laudas escritas”. Nenhum tema proposto, como nos vestibulares ou aulas de redação. Nem mesmo especificações do tipo fonte, corpo, espaçamento, enfim desespero total e criado por mim. Poderia não ter feito a inscrição, procurado saber antes quais os requisitos necessários para o curso. Mas fui tomada por um impulso e agora?

Escrevi na adolescência, talvez os hormônios e as dúvidas existenciais ajudassem. Parei porque tive que me empenhar nos estudos, passar no vestibular, procurar emprego, trabalhar, agradar ao chefe, fazer carreira, buscar o amor, casar, procriar, cuidar da casa, do marido, dos filhos, cultivar amizades, acompanhar os rumos da política, tomar decisões, frequentar academias e salões de beleza, viajar etc. Todas atividades fundamentais.

Após fazer tudo isso e mais algumas coisas, aposentei-me, separei-me do marido, casei os filhos e só voto nulo. Decidi voltar a escrever. Inscrevi-me em curso, este que agora me ordena a tarefa. Fui professora universitária de antropolgia. Preparei minhas aulas e produzi alguns artigos, não muitos, todos sob imposição. Dizia que as limitações acadêmicas me inibiam. Desejava era fazer ficção, ensaios, crônicas, contos, mas nada disso fiz, devido aos afazeres elencados acima. Será mesmo? Provavelmente não eu tenha talento.

Escrever é difícil, e sempre colocava esta assertiva para meus alunos. Indícios históricos confirmavam minha tese; afinal a espécie humana surgiu há milhares de anos, mas somente a partir do século XIX, graças ao louco do Napoleão – primeiro herói moderno -, a ideia de que todos os homens deveriam saber ler e escrever vingou entre os humanos. Mesmo assim leitura e escrita não são atividades que façam parte do repertório de 100% da chamada humanidade.

Existiriam regras que facilitassem a chamada escrita criativa? Alguns autores falam de disciplina. Trancam-se em seu escritório durante toda a manhã e de lá sempre saem vitoriosos com laudas redigidas. Outros fogem das cidades, vão para a placidez dos campos ou das praias desertas de inverno e terminam romances, compõem poesias, produzem contos e novelas. Há os que sentam em escadas de hotéis decadentes, como Patti Smith escrevendo nos corredores do Chelsea em Manhattan, ou se acomodam em bancos de praças fazendo anotações em molesquines. Certamente desligar a televisão, os telefones fixos e celulares e não se preocupar em ler os jornais pela manhã ajude substancialmente. Drogas ajudariam? Absinto, LSD, destilados, maconha, Skank? Tomo um chá.

Muitos autores afirmam sobre o martírio que é escrever e o sofrimento maior que seria não fazê-lo. Quando estou a caminho de algum lugar, geralmente sentada em ônibus públicos, as ideias brotam, surgem, germinam aos borbotões. Personagens instigantes surgem em minha frente, tramas mirabolantes quase se materializam, e sou tomada por questões existenciais poderosas e pertinentes. Entretanto, quando me sento em frente ao computador, nada sai. Lembro que preciso ligar para minha filha, das contas a pagar, coisas no banco para serem resolvidas e filmes que preciso assistir. Levanto-me e ando de um lado para o outro à espera da chamada inspiração e absolutamente nada.

Acho que no momento o melhor seria cancelar a inscrição no curso e evitar o mico de aparecer sem nada escrito. Posso oferecê-lo a algum amigo que queira enveredar pelo ramo literário ou até mesmo deixar o dinheiro como contribuição voluntária para instituição que propõe tarefa tão interessante que é orientar a quem deseja ser escritor. Outra solução seria escolher outro curso e desistir desse. Mudar de ideia faz parte do universo de pessoas saudáveis, imaginativas e curiosas.

De repente entro em pânico. Percebo que se um texto é pedido é porque será lido. Quem cometeria esse ato? Somente o professor (facilitador) do curso? Seria lido em voz alta, para todos ouvirem? Eu terei que lê-lo em voz alta, como em concursos públicos para professor universitário? Quase enlouqueço e me vejo em versão tropical de cena do filme Iluminado. Jack Nicholson preenchendo páginas e páginas de um texto sem nexo, me parece que repetindo as mesmas palavras ou frases em todas as páginas. Seria isso? Poderia pegar o DVD e confirmar, preciosismo de cientista pesquisadora? Maneira de adiar a tarefa de escrever?

Quantas palavras seriam necessárias para duas laudas? Posso utilizar a técnica “recorte e colagem”. Pegar parágrafos de vários autores e produzir um conto totalmente Frankenstein e chamar de literatura punk. Outra idéea surge. Pegar um texto e substituir as palavras por sinônimos, talvez antônimos e criar um texto genuinamente meu. Tais artimanhas, se realizadas, me levarão não para o temor de produzir má escrita e sim para a dúvida: serei descoberta? Que tipo de crime contra a literatura e a arte posso cometer com estes atos? Valeria a pena entrar no Google e buscar informações sobre plágio, antes de amadurecer a ideia e partir para a ação?

Preciso escrever.