Por Bruno Fernandes Zenóbio de Lima
Acabei de entrar
em casa. Minha geladeira está uma droga. Deixei o vinho deitado na prateleira
de ferro escorrer e parece que uma carne podre deixou seus traços sanguíneos.
Não tem cerveja, não importa, nem bebo. Meu gosto pequeno-burguês tem me
permitido vinho do porto. Abro a geladeira, o puta-merda está todo engordurado.
Só tem macarrão bolorento. Ninguém limpou esse cubículo.
Minha noite
começou bem. Não tenho nenhum lugar para ir. Liguei. Meu amigo está em sua casa
vendo filme com a namorada. Sexta a noite é dia de bater cartão. Como diz um
colega meu do trabalho: sexta-feira, mesmo aqueles que não praticam se lembram.
Seu jeito mal-humorado era sintomático. Provavelmente, gastaria seu alto
salário, após anos de serviço público, com prostitutas da 315 norte. Dizem que
os homens não pagam para estar com mulher alguma, mas para se liberarem delas
depois de tomarem um minuto de prazer, ou um segundo? Sexta-feira é assim, quem
não tem cão caça com gato.
E minha última
namorada me largou porque eu tinha nojo. De fato, ela tinha razão, as transas
mais intensas que tive foram aquelas em que eu perdi totalmente o nojo.
Deglutei sálivas e líquidos sem nenhum pudor. Penetramos nos lugares mais
inóspitos como cavalos soltos no campo-corpo. Vasculhamos cada espaço ainda não
tomado, invadimos cada território virgem.
Depois fomos nos deitar sem tomar banho, deixando, propositalmente, em
nossos corpos aqueles vestígios maculados de uma noite de pecado e culpa. E não
dissemos nada...
Uma amiga me ligou, tem show no
Gates. É melhor eu me afastar daqui para que aquela cama não me sorva como um
tufão. Minha cama, às vezes, me atrai como um imã. Ela quer acabar com minha
noite. Minha cama é muito egoísta, quer escravizar meu corpo com imensas
delícias. Ela me oferece uma sensação ilusória de segurança, privacidade e
acolhimento que o mundo exterior quer me retirar. É como retornar, subitamente,
para o ventre de minha mãe quando me enrosco no edredon macio e me protejo de
todo o mau que há lá fora. Sou um pequeno deus em minha casa. Minha arrogância
silenciosa se destila como um veneno nas coisas das quais tenho controle.
Melhor eu
mergulhar no turbilhão da noite. E minha amiga é boa nisso, ela topa tudo.
Acabou um casamento relâmpago, e precisa se meter nesse auto-engano, para
depois ser enganada de novo. Nada de trágico, a vida é assim... Antes
lembrar-se dos traumas que de um vazio de não ter vivido. Pena que não trago em
minha pele tantas cicatrizes, fui medroso demais. Perdi muito tempo inquirindo
o passado das minhas ex-namoradas, querendo saber com quem tinham transado, em
que posições tinham mais prazer, se foram mais felizes. Demorei a entender que
isso não interessa mais. Elas agora só querem olhar para frente. Essa mania de
posse tem a ver com minha baixa auto-estima, e eu mesmo comecei a me fazer de
vítima para receber atenção como forma de piedade.
Então começo a procurar uma roupa.
Minhas camisas floridas não combinam com minha calça xadrez. Sinto-me bem em
ficar fazendo tipinho intelectual, e muitas meninas caem nessa. Mas essa
perversidade me assola. Elas querem um amor e só sei ficar brincando de
namoradinho adolescente, escrevendo aqueles poemas cheio de clichês que elas
tanto adoram. Vou assim mesmo, sei que
está meio cafona. Combinar roupa nunca foi o meu forte. Não estou à caça.
A noite está efusiva e estou
indeciso. Há muita gente cheia de expectativas que serão frustradas, e muita
coisa descartável e insignificante tratada com grande relevância. É divertido
ver aquele mundo de gente linda, bem sucedida, em seus corpos esculturais,
escravas da imagem que acreditam ter que levar aos outros.
Minha estante
está ali, intrépida. Há poucos livros.
Pensando bem, vou encher o copo de
vinho do Porto e conversar com Pessoa.
Bruno Fernandes Zenobio de
Lima nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. É Analista de Ciência na Fundação
CAPES (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior).
Graduado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (2000), Mestre em
Estudos Lingüísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002) e Doutor
em Estudos Lingüísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006). Tem
experiência na área de Lingüística, com ênfase em Teoria e Análise Lingüística,
Linguística Histórica, e Língua Portuguesa. É autor dos livros de poesia Fragmentismo, Des-Equação e A Tempestade.