quinta-feira, 8 de março de 2012

Acabei de chegar


Por Bruno Fernandes Zenóbio de Lima

Acabei de entrar em casa. Minha geladeira está uma droga. Deixei o vinho deitado na prateleira de ferro escorrer e parece que uma carne podre deixou seus traços sanguíneos. Não tem cerveja, não importa, nem bebo. Meu gosto pequeno-burguês tem me permitido vinho do porto. Abro a geladeira, o puta-merda está todo engordurado. Só tem macarrão bolorento. Ninguém limpou esse cubículo.

Minha noite começou bem. Não tenho nenhum lugar para ir. Liguei. Meu amigo está em sua casa vendo filme com a namorada. Sexta a noite é dia de bater cartão. Como diz um colega meu do trabalho: sexta-feira, mesmo aqueles que não praticam se lembram. Seu jeito mal-humorado era sintomático. Provavelmente, gastaria seu alto salário, após anos de serviço público, com prostitutas da 315 norte. Dizem que os homens não pagam para estar com mulher alguma, mas para se liberarem delas depois de tomarem um minuto de prazer, ou um segundo? Sexta-feira é assim, quem não tem cão caça com  gato.

E minha última namorada me largou porque eu tinha nojo. De fato, ela tinha razão, as transas mais intensas que tive foram aquelas em que eu perdi totalmente o nojo. Deglutei sálivas e líquidos sem nenhum pudor. Penetramos nos lugares mais inóspitos como cavalos soltos no campo-corpo. Vasculhamos cada espaço ainda não tomado, invadimos cada território virgem.  Depois fomos nos deitar sem tomar banho, deixando, propositalmente, em nossos corpos aqueles vestígios maculados de uma noite de pecado e culpa. E não dissemos nada...

Uma amiga me ligou, tem show no Gates. É melhor eu me afastar daqui para que aquela cama não me sorva como um tufão. Minha cama, às vezes, me atrai como um imã. Ela quer acabar com minha noite. Minha cama é muito egoísta, quer escravizar meu corpo com imensas delícias. Ela me oferece uma sensação ilusória de segurança, privacidade e acolhimento que o mundo exterior quer me retirar. É como retornar, subitamente, para o ventre de minha mãe quando me enrosco no edredon macio e me protejo de todo o mau que há lá fora. Sou um pequeno deus em minha casa. Minha arrogância silenciosa se destila como um veneno nas coisas das quais tenho controle.

Melhor eu mergulhar no turbilhão da noite. E minha amiga é boa nisso, ela topa tudo. Acabou um casamento relâmpago, e precisa se meter nesse auto-engano, para depois ser enganada de novo. Nada de trágico, a vida é assim... Antes lembrar-se dos traumas que de um vazio de não ter vivido. Pena que não trago em minha pele tantas cicatrizes, fui medroso demais. Perdi muito tempo inquirindo o passado das minhas ex-namoradas, querendo saber com quem tinham transado, em que posições tinham mais prazer, se foram mais felizes. Demorei a entender que isso não interessa mais. Elas agora só querem olhar para frente. Essa mania de posse tem a ver com minha baixa auto-estima, e eu mesmo comecei a me fazer de vítima para receber atenção como forma de piedade.

Então começo a procurar uma roupa. Minhas camisas floridas não combinam com minha calça xadrez. Sinto-me bem em ficar fazendo tipinho intelectual, e muitas meninas caem nessa. Mas essa perversidade me assola. Elas querem um amor e só sei ficar brincando de namoradinho adolescente, escrevendo aqueles poemas cheio de clichês que elas tanto adoram.  Vou assim mesmo, sei que está meio cafona. Combinar roupa nunca foi o meu forte. Não estou à caça.

A noite está efusiva e estou indeciso. Há muita gente cheia de expectativas que serão frustradas, e muita coisa descartável e insignificante tratada com grande relevância. É divertido ver aquele mundo de gente linda, bem sucedida, em seus corpos esculturais, escravas da imagem que acreditam ter que levar aos outros.

Minha estante está ali, intrépida.  Há poucos livros.

Pensando bem, vou encher o copo de vinho do Porto e conversar com Pessoa.

Bruno Fernandes Zenobio de Lima nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. É Analista de Ciência na Fundação CAPES (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior). Graduado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (2000), Mestre em Estudos Lingüísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002) e Doutor em Estudos Lingüísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006). Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase em Teoria e Análise Lingüística, Linguística Histórica, e Língua Portuguesa. É autor dos livros de poesia Fragmentismo, Des-Equação e A Tempestade.