Por Michelle Horovits
Minha vida tem contornos trágicos. Talvez, ela nunca mais volte a ter o
formato anterior, se é que ela já teve algum formato antes mesmo de eu ser
concebida. Acho que formatos só são adquiridos depois de concebidos, ou na
idéia da concepção, mas isso não faz muito sentido no começo da história.
Preciso contar tudo, do começo, para que você não fuja pensando que sou louca e
não que não haja mais pessoas como eu no mundo. Não quero parecer única, nem
muito menos reduzir dores alheias, mas a minha história é bem singular, só
isso.
Meu pai era um homem comum, não gosto do tom dessa palavra, mas vamos lá,
ele era convencional. Como homem, encontrou uma mulher, que logo depois se
tornou minha mãe, quer dizer, ela não se tornou, vamos simplificar, ela foi
minha mãe. Ele a encontrou na Praça da Luz, em São Paulo, e se
apaixonaram imediatamente. Ela era estrangeira, havia chegado há um ano da
Rússia com a família, e se já virava bem com o português. O que mais chamou a
atenção do meu pai foi justamente o fato de ela ser russa, achava exótico,
bonito, ele adorava a Rússia, lá tinha neve, mas nunca chegou a ir até
lá.
Foram 54 refrescos ao todo, o que equivale a mais ou menos a 135 litros de
suco para cada um. E após 23 tentativas de enroscar a mão, na 24° ele
conseguiu. Dezessete filmes, 15 saquinhos de pipoca e 13 jujubas, minha mãe
adorava jujubas. Entre os filmes, os 135 litros de suco e as jujubas houve um
lapso no tempo: um homem que acha estar em posse de todas as suas faculdades
mentais se confessa perdidamente apaixonado. Meu pai a pediu em casamento e se
casaram.
Foram 435 convidados, dois quilos de arroz jogados nos noivos, 35 dúzias de
rosas vermelhas, um padre gordo, 135 minutos de cerimônia, seis caixas de
vinho, além de toda a vodca trazida da Rússia especialmente para a ocasião. Sei
de todos os detalhes porque tenho comigo o enorme álbum de fotografias da
família, onde posso validar minha história. Minha mãe fazia questão de
etiquetar cada foto com números e datas exatas. Ela sempre teve medo de se
esquecer da vida que teve e se transformar em uma outra pessoa.
Eles passaram a lua de mel no Rio de Janeiro, onde papai consumiu 12
caipirinhas na beira da praia e minha mãe comprou 12 biquínis, dos quais só
teve tempo de usar 6. Mas, segundo a filosofia de minha querida
mãe, era sempre melhor sobrar do que falta, as vezes penso nisso, mas nunca
consegui chegar a uma conclusão concreta a respeito da real necessidade de
algumas coisas, nem de seus excessos e nem de sua falta.
O ano era 1961, ano em que Kennedy se tornou presidente dos
Estados Unidos; e em que Jânio Quadros tomou o poder no Brasil; e
quando começaram a construir o muro de Berlim na Alemanha e Yuri Gagarin foi lançado ao espaço.
Enfim, a casa. Eu nasci naquela casa, sim, nasci nela, literalmente. À
época, as mulheres davam à luz em suas próprias camas, isso me faz dar graças a
Deus pelas enfermeiras e clínicas especializadas de hoje, digamos que o meu
quarto não é um local muito adequado para uma criança nascer, a contar pelos
livros equilibrados e a total falta de ordem e sujeira, acho que não é adequado
para nenhum ser humano viver, eu vivo lá simplesmente porque preciso. Mas eu
nasci naquela casa. Era um sobrado amarelo, com três quartos, duas salas, dois
banheiros, um jardim e uma cozinha, além de ter uma pequena área de serviço.
Minha mãe adorava a casa, ela trabalhava meio período como telefonista e
cuidava do lar nas horas restantes. Três anos depois de casados, minha mãe caiu
doente, ela não caiu e ficou doente, ela simplesmente adoeceu. Meu pai podia
ser um homem convencional, mas era o convencional mais louco pela mulher que
poderia existir, sua vida era minha mãe. Todos os dias, ao chegar do trabalho,
ele lhe trazia uma rosa, a acordava com beijos, comprava discos para ela e lhe
atendia todos os caprichos. Aqueles olhos azuis eram o mundo de papai.
Meu pai ficou ensandecido com a doença de mamãe, por um tempo pensou se não
foram os 135 litros de suco de quando a conheceu? Será que exagerou no
refresco? Ou teria sido todo aquele arroz que jogaram nela no dia do casamento?
Ele não sabia, e não saber a causa do problema de mamãe, não poder ajudá-la, o
matava.
Ele chamou os melhores médicos de São Paulo, mas nenhum deu jeito. Ele
chamou os melhores médicos do Rio, mas nenhum ajudou. Ele cogitou levar mamãe
para consultar na Rússia, às vezes era um mal que só os russos têm, sei lá.
Eles partiram em um mês e foram muito bem recebidos em Moscou. Papai ficou
completamente perdido em meio a tantos russos falando somente russo e com suas
caras e casas russas. Mas nenhum russo, que falava somente russo, conseguiu
saber qual era o mal de minha mãe que a cada dia estava pior e mais fraca.
Até que uma russa, que aprendeu a falar português porque cuidava de um
menino angolano, lhe disse:
– Aqui na Rússia para curar qualquer
doença, as mulheres engravidam. Ter filhos deixa qualquer mulher mais forte
E essa idéia pareceu brilhante para o meu pai, que já estava se agarrando a
qualquer esperança que lhe dessem. E foi assim que surgiu a idéia de ter a mim,
qualquer dia desses volto à Rússia para agradecer a essa senhora, se ainda
estiver viva, ou então lhe dizer para da próxima vez guardar suas mandingas
para ela mesma.
Depois de dois meses tentando, minha mãe finalmente engravidou. Eu era a
cura mais esperada do ano, se a indústria farmacêutica soltasse alguma grande
descoberta ninguém perceberia, pois eu era O remédio. Faltou, infelizmente, colar
uma bula na barriga da minha frágil mãe.
Todos acreditavam na história da velha. Acreditavam que aquilo realmente
iria acontecer, que a minha mãe logo melhoraria e que eu era a causa de sua
cura. Ela melhorou por um tempo, ficou mais forte, tinha mais fome, ficava
menos pálida. Eu era um tipo de milagre que, enquanto fizesse minha mamãe ficar
bem, era muito bem vinda ao mundo.
Mas, em meados de junho minha mãe ficou pior, muito pior, era o sétimo mês
de gestação e ela não conseguia se levantar da cama, não se sabe porquê. Quando
perguntavam sobre mamãe, só se dizia; é uma pena, estamos fazendo de tudo. O
médico disse que a gravidez tinha se transformado em uma gravidez de risco.
Porque eu seria um risco para minha mãe? Pelo amor de Deus esses médicos não
sabem o que falam. Então no oitavo mês, de volta ao Brasil, as coisas ficaram
realmente difíceis para ela, mias tarde me perguntei se não foi minha culpa
realmente, eu nasci antes do previsto, com oito meses, cara de joelho, 2 kg e cabia na palma da mão.
Minha mãe ficou muito mal depois do parto, mas sua felicidade em me ver bem
era visível, ela pôde me amamentar algumas vezes e me ninar, mas dois dias
depois de meu nacimento ela não resistiu e morreu.
Esse foi meu primeiro crime, não curar minha mãe, eu não era "a
cura" como todos acreditavam e então minha mãe se foi, era como se
tivessem comprado comprimidos de farinha na farmácia e só descobriram depois quando
já era tarde. Meu pai ficou inconsolável, todos ficaram inconsoláveis. Eu era o
primeiro remédio do mundo que chorava, mas não tinha mãe. Supostamente era para
eu ser sua salvação, mas não cumpri a única missão que me designaram na vida, a
única coisa que eu deveria fazer pela pessoa que me era tão cara, eu não fiz.
Falhar foi o primeiro grande ato da minha vida, e pelo resto dela, eles não me
deixaram esquecer disso.
Eles quem? Minha família, os russos, meu pai, o Kremlin deve ter me
convocado para saber o que afinal saiu de errado com a simples missão de salvar
minha frágil mãe. Nasci pedindo licença, sendo vitima de olhares de dor, pois
cada vez que minha cara de joelho se arrumava, cada vez mais eu me parecia com
a minha mãe, culpada por meus crimes com aqueles olhares. Com o tempo meus
cabelos ficaram iguais aos dela, o olhar ficou igual e o nariz então, era
idêntico. O leve traçado do rosto foi ganhando forma e todos olhavam
escandalizados como eu era parecida com minha mãe. Olhares tristes me perseguiam
da infância até a adolescência, pois meu segundo maior crime foi ser tão
parecida com ela. Eu percebia nos olhos de meu pai que para ele era muito
difícil me encarar, e todos da família exibiam o mesmo olhar, no qual, com o
passar do tempo eu fiquei especializada. Com o tempo, me acostumei a pedir
desculpa por existir e por ser parecida com minha mãe.
A consciência da culpa por não ter salvo minha mãe sempre foi uma constante
nos meus dias. Meu pai nunca mais foi o mesmo homem após a morte de minha mãe,
não que eu fale com conhecimento de causa, pois não o conhecia antes, mas
escutava meus tios conversarem por trás das portas, sussurros, histórias
contadas bem baixinho entre goles de vodca.
Nunca tive um só problema de expressão. Não, meus problemas são de
concepção, mas é essa minha dificuldade de entender que faz com que, por
instinto, eu procure uma forma de falar. Quando digo concepção, falo da minha
concepção, a grande culpada do meu mal. Se por um joguete do destino minha mãe
não tivesse ido à maldita Rússia ou até se tivesse ido, mas se os incompetentes
russos tivessem a ajudado a melhorar, talvez eu não tivesse que conviver com
essa culpa, talvez eu nascesse pouco tempo depois em condições agradáveis e em
um parto mais saudável, em um hospital, pois eu sempre desconfiei que o que
matou mamãe foi ter um filho em um quarto qualquer em um sobrado amarelo.
Talvez eu não tivesse esse peso desde a minha concepção de ter que salvar minha
mãe sem ao menos ter a consciência plena disso.
Era tão mais fácil com Édipo ou Jocasta, eles tinham o destino para culpar.
Eu não tenho ninguém para culpar. Por conseqüência, eu a carrego sozinha, pois
na ausência de um Deus, o homem responde por suas ações, no meu caso eu
respondo pela morte de minha mãe. Não fui devidamente julgada, me culparam
antes de efetivamente existir e poder me defender contra tais acusações ou
simplesmente poder recusar tamanho fardo.
Mas eu sei o que foram e o que são as minhas dores. A cólera é fácil de
expor, mas a dor não, essa me envergonhava muito, e com gosto. Minha violência,
essa vem do fato de que outras violências vitais minhas foram esmagadas. A cada
vez que me negavam a felicidade e me censuravam por estar viva eu simplesmente
sorria e pensava que era um manso sorriso de resignação.
Hoje sobrevivi à minha família, mas ainda carrego a culpa por não ter salvo
minha mãe como o meu pai queria. E hoje quem está doente sou eu, pode ser
alguma brincadeira do destino, sem contar que eu nem ao menos acredito em tal
coisa, mas padeço do mesmo mal da minha mãe e na mesma idade, o que é
engraçado, mas a única diferença é que não me casei, não precisava de mais um
alguém para me dizer que falhei em alguma outra coisa, não suportaria isso. E é
por isso que estou aqui. Preciso de ajuda, preciso de um filho. Só assim posso
me salvar. Aquela maldita russa não erraria a mão duas vezes.
– No desespero pode ficar mais caro
– Não importa o preço, eu pago, preciso
engravidar, não me resta muito tempo. Entra no carro.
Michelle Horovits é jornalista e faz mestrado em literatura
brasileira pela Universidade de Brasília.