segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Zona da Mata Mineira: escravos, família e liberdade

A presente coletânea é fruto do trabalho do grupo de pesquisa Sociedade, Cultura e Trabalho na Região da Zona da Mata mineira, séculos XVIII-XX, que foi criado após o “II Encontro de História Econômica e Social da Zona da Mata Mineira”, realizado em Muriaé (MG), em outubro de 2008, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Santa Marcelina (Fafism/Muriaé). Por meio de um meticuloso levantamento das fontes bibliográficas, paroquiais, cartorárias e de periódicos, o grupo pretende traçar o desenvolvimento da sociedade formada à margem direita do rio Paraíba do Sul, entre os rios Pomba e Doce, e arredores, enfatizando aspectos da estrutura de posse da terra, as várias formas de trabalho, bem como os aspectos sociais, culturais e econômicos surgidos nessa sociedade entre os séculos XVIII e XX.

O leitor encontrará nestes textos uma leitura fácil, de narrativa objetiva e adequação entre o método analítico e as fontes utilizadas, em um perfeito diálogo com a historiografia nacional, possibilitando aproximações e comparações com outras regiões.

A coleção História e Região têm por objetivo produzir uma historiografia preocupada em aprofundar o conhecimento de unidades regionais aclarando temas que incluem o estudo de sistemas agrários, estruturas populacionais, a organização de famílias e suas relações de poder, além das perspectivas políticas daí decorrentes.

Inicialmente, os três fascículos que inauguram a coleção se debruçam sobre a região da Zona da Mata de Minas Gerais privilegiando questões sobre a demografia escrava, a estruturação da riqueza advinda da cafeicultura e do escravismo, os conflitos decorrentes da posse da terra e os movimentos políticos que deram amparo ideológico a essas estruturas.

Embora o grupo trabalhe com quatro linhas de pesquisa: Imprensa e cultura política, Patrimônio e cultura,  Trabalho e região e Relações sociais na Zona da Mata mineira, este projeto envolve apenas esta última, visando à maior unidade dos textos.


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Elione Guimarães toma como ponto de partida pesquisas recentes que demonstram não ter sido incomum no período escravista e nos primeiros anos após a abolição da escravatura, o acesso de  libertos à terra, fosse por  compra ou herança, por meio de usufruto ou propriedade e que muitas vezes estas terras eram legadas por ex-senhores, caracterizando-se em geral como pequenas  propriedades agrárias, não raro em meio de terras pró-indivisos. Colocadas essas premissas, propõe algumas reflexões: o que significou para muitos desses libertos terem acesso a um pedaço de terra?  como eles utilizaram essas propriedades e como nelas se mantiveram? até que ponto o desejo dos senhores, de deixarem para os libertos porções de terras para se arrancharem e sobreviverem foram respeitados pelos seus descendentes e pelos proprietários vizinhos? Essas questões, entre outras, são respondidas através do relato da saga do liberto Antônio Ribeiro de Miranda e suas estratégias para sobreviver e manter a si e à sua família em uma porção de terras legadas por sua ex-senhora e para garantir o seu direito de proprietário sobre as glebas herdadas, objeto da cobiça de poderosos locais.

Fernando Gaudereto Lamas analisa as características socioeconômicas e a posse de escravos na área central da Zona da Mata Mineira nos primeiros anos do século XIX, com foco em dois distritos da Freguesia de São Manoel da Pomba (atual Rio Pomba): São João Batista do Presídio (atual Visconde do Rio Branco) e São Januário de Ubá (atual Ubá). Dada a homogeneidade da natureza da fonte e a confiança no registro, toma como instrumental de pesquisa as Listas Nominativas, cujas características de dados seriais de caráter oficial , num período protoestatístico como o abordado, melhor atendem a um trabalho de quantificação e as examina à luz da micro-história e da técnica de reconstituição de famílias. Trabalhando estatisticamente o método de comparação das distribuições por meio de porcentagens - que lhe permite padronizar distribuições de freqüências num conjunto de freqüências totais diferenciadas - examina aspectos diversos dessas populações, tais como  sexo, estado civil, idade e condição social, percebendo também que a região era muito carente de meio circulante, fato que coloca a economia local próxima da camponesa, isto é, baseada essencialmente na mão de obra livre e familiar.

Jorge Prata de Sousa desenvolve a temática da manumissão de escravos no município de Cataguases, dando-lhe um recorte temporal que se estende do início dos anos sessenta  à promulgação da Lei Áurea. Num texto fluido e bem encadeado, elege, dentre os diversos procedimentos que pavimentavam o caminho do escravo rumo à liberdade, os registros cartorários de cartas de alforria e os testamentos/inventários com alforrias neles manifestas, tendo sempre o cuidado de aliar aspectos históricos aos resultados de sua pesquisa. Ao mesmo tempo, busca perceber as motivações que aferiram a escravos suas libertações como o último desejo de seus senhores e, quando necessário, aproxima os registros testamentários e dos inventários às transcrições cartoriais, tentando averiguar quais as estratégias postas em prática por escravos e senhores. Examina esses documentos sob os aspectos motivacionais e condicionantes. Sobressaem nas motivações os bons serviços prestados pelos cativos. Na variável “condição” destacam-se a prestação de serviços ( que expressava o esforço do senhor em fixar o liberto à sua órbita de influência)   e o pagamento (através do qual o proprietário integralizava parte do capital investido). Do ponto de vista das estratégias, observa que a manumissão testamental era a que melhor expressava a vontade do proprietário, recaindo preferencialmente sobre escravos próximos do seu núcleo familiar, demarcando uma característica da família senhorial do sistema escravista, onde agregados e escravos, não obstante sua condição participava intimamente do dia-a-dia, estabelecendo vínculos que transcendiam a relação sócio-econômica. Faz notar, por fim, que a curva ascendente das alforrias – notadamente aquelas com cláusulas de prestação de serviços - nas últimas décadas da escravidão, denota o apego à mão-de-obra servil e em descenso num processo de deterioração da disciplina escrava e de diminuição do consenso político favorável à escravidão.

Jonis Freire focaliza a mudança de direção nos estudos sobre a escravidão no Brasil, principalmente no que diz respeito à família escrava, argumentando que essa nova corrente historiográfica derrubou várias teorias a respeito da promiscuidade dos cativos, da fragilidade de suas vidas familiares e de seus laços afetivos, sua suposta anomia e a instabilidade do convívio entre pais e filhos. Mostra que os cativos não eram infensos à organização familiar, ao contrário, consideravam-na de fundamental importância para suas vidas e lutavam  cotidianamente para manter e ampliar seus laços de amizade e parentesco e que a família propiciou àqueles homens e mulheres escravizados a oportunidade de manter e redefinir suas raízes africanas, auferir ganhos (sociais, econômicos e políticos), constituir espaços de sociabilidade e solidariedade. Conclui que essa família se estendia muito além dos limites de qualquer unidade domiciliar ou consangüínea, podendo atravessar as barreiras legais da condição de escravo por intermédio das relações oriundas entre cativos e pessoas livres e libertas.

Márcia Amantino busca entender como estava estruturada a escravidão na área de Cataguases, tomando como ponto de partida  a escravaria pertencente ao Major Vieira da Silva Pinto, o primeiro membro da família Vieira a chegar à região e, segundo alguns, responsável pela efetiva ocupação e povoamento da área. Promove o rastreamento desses escravos junto aos herdeiros do Major a fim de conhecer como se organizavam enquanto comunidade e quais eram os limites e conflitos de seus cativeiros. Enfoca também a lógica agrária da família Vieira Resende que mantinha nos casamentos entre primos a principal forma de estabelecimento de alianças políticas e financeiras, fazendo a riqueza circular entre os membros do mesmo grupo, além de criar uma espécie de barreira protetora em sua volta ao fixar os membros da família em fazendas próximas umas das outras. 

Vitória Fernanda Schettini de Andrade lança um olhar sobre o espaço histórico e geográfico de São Paulo do Muriahé, discorre sobre ocupação, conflitos e redes de sociabilidades, revela histórias perdidas no tempo, profetiza sua crença em que muitas das incógnitas do passado ajudam a revelar traços e características do presente, enfatiza a relevância da História Regional para a compreensão de outra, mais ampla e reforça a idéia de que as reconstruções das desigualdades regionais e culturais devem ser compreendidas em seu aspecto mais profundo. Tomando os índios como protagonistas deste trabalho, a autora revela a face cruel da ocupação do território geográfico de São Paulo do Muriahé e seu entorno. Com o discurso de pretensa superioridade, seja administrativa e/ou religiosa, a cultura branca se fez dominante, ocupando áreas que, até então, pertenciam aos índios Puris e Coroados e nem mesmo o Regulamento das Missões de 1845 e a Lei de Terras de 1850 foram suficientes para conter os problemas enfrentados pelas concessões de terras aos nativos