O “planeta esporte” sempre
foi uma arena especialmente fértil para a construção de simbologias de gênero
rígidas, bipolares e em oposição frontal uma diante da outra. Reforçar e mesmo
formar esquemas que consagrem os padrões de masculino e de feminino aceitos e
vigentes hegemonicamente é algo que o esporte vem ajudando a construir há anos
– sobretudo enquanto fenômeno que dispõe do corpo humano, no qual são inscritos
muitos dos signos estereotipados de gênero. Dessa forma, o esporte pode ser
considerado uma instituição social “genereficada”. Mas também, por tudo aquilo
que dispõe ao mundo enquanto normas de comportamento e atitudes, o esporte
também é um fenômeno “generificador”. – um fenômeno que ajuda a construir a
ordem de gênero vigente.
O atleta, qualquer que
seja o seu sexo, deve se conformar com as normas de gênero hegemônicas
presentes na sociedade, as quais, tais como outras hierarquias – étnicas,
sociais, econômicas, entre outras – engendram relações de poder no cenário
esportivo. Relações de poder que apontam para desigualdades sociais –
notadamente a exclusão, a marginalização e a discriminação da mulher no esporte
– que, por sua vez, são pautadas nas diferenças biológicas. E no esporte a diferença
em questão é o sexo, como se esta fosse a única distinção biológica existente
entre todos os humanos a ser levada em consideração na prática esportiva. Não se atenta, todavia, que há outras
variantes biológicas importantes para a experiência esportiva, tais como
estatura, tamanho de membros, gordura, entre tantas outras, que ocorrem não
somente entre homens e mulheres, mas entre todos os humanos. E que, em termos
esportivos, pode haver uma diferença muito maior entre um homem muito alto e
outro muito baixo, do que entre um homem e uma mulher de tamanhos
semelhantes. E, no esporte, pessoas
diferentes (independentemente do sexo) desenvolvem habilidades dessemelhantes,
e se dirigem para modalidades diversas, de acordo com as suas características
biológicas, mas também em virtude de oportunidades, interesses, possibilidades,
etc.
E muitos, no afã de provar
a inferioridade feminina pretendem confrontar as forças biológicas de homens e
mulheres – se anteriormente a justificativa desta estratégia era saber se a
mulher “poderia” fazer certas modalidades,
atualmente é para se conhecer se ela fará “como os homens”. No entanto,
mensurar as diferenças físicas e/ou biológicas entre homens e mulheres teria
relevância apenas se conseguíssemos "apagar" os efeitos dos aspectos
históricos e sociais que envolvem o desenvolvimento da mulher no esporte - ao
contrário de outras esferas da vida (econômica, política, etc.) a entrada da
mulher na arena esportiva vem sendo mais lenta, a segregação foi e se mantém
contínua. Todavia, o que se percebe é que as mulheres vêm atingindo recordes e
marcas olímpicas semelhantes àquelas dos homens em anos anteriores; e o corpo
da mulher não mudou radicalmente, não sofreu mutações em termos genéticos ou
biológicos no último século – o que mudou foi a visão social que se tem do
corpo. Isto mostra que o ambiente social, em todos os níveis (o treinamento
físico, mental, aprovação social, tempo de prática, educação e oportunidades, etc.)
é que vem mudando - e consequentemente a mulher, bem como o homem, frutos que
são de seu tempo e cultura.
Porém, historicamente, a
mulher foi proibida ou afastada da prática de esportes, quase sempre em virtude
de certos aspectos biológicos, os quais segundo afirmações médicas e
científicas de determinadas épocas, inviabilizariam a realização de atividades
extenuantes.
Como se observa hoje em
dia, estas características se baseavam muito mais na visão e nos preconceitos
de gênero do que em verdades biológicas. Até mesmo a ciência está sujeita a
mudanças, e suas verdades também são construtos históricos. Não se defende aqui
que se anulem as diferenças entre homens e mulheres – que, aliás, são bem
vindas como todo o conjunto da diversidade humana, que enriquece o mundo.
Tampouco se está pleiteando que eles e elas comecem a disputar junto, em
confronto entre si. Dificilmente se encontram modalidades esportivas nas quais
a prática não seja entre pessoas de um mesmo sexo. Via de regra a disputa se dá
somente entre homens ou apenas entre mulheres, e talvez não seja este o momento
de se propor uma unificação radical.
Vivemos uma era de
mudanças extremas, e estamos apenas esboçando ideias e explorando práticas
correspondentes a estes novos tempos. Colocar homens e mulheres em cotejos
típicos de “guerra dos sexos” – nos quais as normas dominantes de gênero provavelmente
forçariam os homens a tomarem atitudes extremamente violentas para não correrem
nenhum risco de serem suplantados pelas mulheres – poderia trazer prejuízos físicos,
políticos e sociais para todos, pois a rigidez das representações de gênero no
esporte não pressiona e prejudica somente as mulheres, excluindo-as, mas também
amarra os homens.
No entanto, já há diversas
experiências nesta direção, desde algumas mulheres competindo entre homens,
oficialmente (caso do hóquei sobre patins na Finlândia), ou mesmo do hipismo
clássico, no qual homens e mulheres competem individualmente pelos mesmos
objetivos. E no esporte infantil, algumas competições já consideram a
possibilidade de meninos e meninas disputarem em conjunto, uma vez que as tais
diferenças físicas não se manifestaram ainda (?) antes da puberdade.
No interior de
comportamentos agressivos, identificados com valores da (hiper) masculinidade
hegemônica e brusca, os quais rechaçam a importância do feminino, sobretudo no
esporte.
O aspecto central da
agenda para os próximos anos, em primeiro lugar, é se ter clareza quais normas
e estigmas de gênero podem estar levando a discriminações no mundo dos esportes.
E se criar espaços educativos para a conscientização e reflexão sobre estas
normas, nos quais se possa discutir e questionar os padrões vigentes e
antagônicos de masculinidade e feminilidade. E principalmente procurar cada vez
mais aproximar todos os programas esportivos das metas de desenvolvimento do
milênio propostas pela força-tarefa para o desenvolvimento do esporte e da paz
da ONU.
Esta força, composta por
membros de diversas agências educativas, enxerga na prática esportiva uma
excelente oportunidade para se desenvolverem valores de disciplina, liderança e
autoestima, mas também de respeito, cooperação e tolerância. Para a
força-tarefa, (...) a prática do esporte é vital para o desenvolvimento
holístico dos jovens, ajudando sua saúde física e emocional, e edificando
valorosas conexões sociais. O esporte oferece oportunidades para a diversão e
autoexpressão, enéficos, sobretudo para os jovens com poucas oportunidades em
suas vidas (UN, 2003, tradução livre).
Especificamente no que
tange à equidade de gêneros, o documento é claro: o esporte é um direito humano
fundamental, e como tal deve ser um instrumento na consecução de metas de
paridade de gênero na educação. Em decorrência da tradicional e histórica
exclusão das mulheres do mundo esportivo, a participação no esporte pode
quebrar velha, mas consagrados estereótipos de gênero que pesam sobre garotas e
mulheres. E a cada vez que mulheres atletas ganharem mais reconhecimento, se
tornarão mentoras das novas gerações. A nova ordem de gêneros no interior do
esporte não será “conceitualmente” masculina ou feminina; ao contrário, terá um
horizonte “rosa E azul”, com milhares de
tonalidades, ultrapassará as barreiras e limites dos estigmas, não será excludente
e fomentará a equidade. Construir este
novo estado das coisas, sobrepujando preconceitos e discriminações de gênero, é
a urgente tarefa de todos e todas que acreditam no esporte como um instrumento
para combater a barbárie e promover uma maior justeza nas relações humanas.
[i] Jorge Knijnik é doutor em Psicologia Social pela Universidade de
São Paulo. Publicou pela Apicuri em 2010 o livro ‘Gênero e Esporte: Masculinidades e Feminilidades’. Atualmente mora
e leciona na Austrália, onde é docente da School of Education at University of
Western Sydney.