segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Darcy e a consciência de quem somos


Por Eric Nepomuceno | Para o Valor, do Rio

Já lá se vai um bom tempo - em fevereiro agora serão 16 anos - que Darcy Ribeiro cometeu a suprema indelicadeza de nos deixar. Tinha 75 anos. Foi antropólogo (dizia que seus melhores tempos foram os que passou entre indígenas na Amazônia, quando era o mesmo jovem impetuoso que soube ser até o fim), professor, ensaísta polêmico, romancista, político, vice-governador de Leonel Brizola no Rio, quando implantou a escola pública de período integral, agora tão copiada pelos mesmos que tanto a criticaram naquela época. Foi discípulo do general Rondon, defendeu os índios brasileiros com todas as suas forças.

Além disso, antes do golpe militar que em 1964 instaurou uma ditadura que o levou à prisão e ao exílio, foi ministro-chefe da Casa Civil, ministro da Educação e criou - com uma equipe especialmente brilhante de sua geração, uma geração que efetivamente soube pensar o futuro - a Universidade Nacional da Brasília (UnB), da qual foi reitor.

Durante seu longo exílio peregrinou pela América: Uruguai, Chile, Venezuela, Costa Rica, Peru, México. Assessorou Salvador Allende em Santiago e Juan Velasco Alvarado em Lima, durante a frustrada revolução dos militares peruanos que entre 1968 e 1975 tentou mudar o país. Foi consultor da ONU. Foi tudo isso e muito mais. Dizia que era, acima de tudo, educador.

Morreu senador da República. Cada vez que penso no que ele fez e viveu, chego à conclusão que 75 anos foi um tempo demasiado curto para tanta coisa. Mas assim era ele.

Quis entender o Brasil. Quis revelar o Brasil, a si mesmo e aos brasileiros. Até o último suspiro viveu com a angústia dessa tentativa, com a urgência dessa frustração. Esse esforço descomunal está em toda a sua obra, dos estudos antropológicos aos ensaios sobre nossa história, passando pela sua atuação política e pelos romances. Senão, o que seria "Maíra", o que seria "O Mulo", puras tentativas de entender, explicar e denunciar um país de barbaridades e esperanças imensuráveis?

O resumo desse esforço sem fim está registrado no seu derradeiro livro, "O Povo Brasileiro". É, talvez, seu mais complexo e completo voo para entender os mecanismos que, durante séculos, impediram nosso país de ser o que poderia e podia ser.

Quis também entender a América Latina. Era um inquisidor insaciável, que disparava perguntas ao tempo, aos contemporâneos, à história, a si mesmo.

Sua obra sobre nossas comarcas - "As Américas e a Civilização" ou "O Dilema da América Latina" são referências permanentes há décadas - ajudou a formar gerações de mentes inquietas continente afora. Continua sendo mais estudado, debatido e cultuado nos países hispânicos do que nesta nossa medíocre mesquinhez.

Foi o mais latino-americano dos intelectuais brasileiros, sempre tão distantes e distanciados de seus vizinhos. Em outubro, para celebrar os 90 anos que ele não chegou a cumprir, a Fundação Darcy Ribeiro, com a Editora da UnB e a Fundação Biblioteca Nacional, publicou uma nova edição de seu livro "América Latina: a Pátria Grande".

São textos escritos entre meados dos anos 70 e princípios dos 80, tempos de turbilhão, quando a maioria de nossos países sufocava debaixo de ditaduras de maior ou menor ferocidade, mas ferozes todas, outros padeciam o tormento de guerras civis genocidas e uns poucos, como ilhas isoladas, viviam democracias pressionadas e ameaçadas.

O mais impressionante desse pequeno volume é que, passadas décadas, e apesar da natural defasagem de alguns dados e da transformação de algumas vertentes da realidade, continua sendo a prova da capacidade de Darcy ser um visionário, um ardoroso defensor da inexistência do impossível.

Em vários aspectos, o que está nesse livro mostra que, ao disparar respostas e perseguir perguntas, Darcy antecipava o que ocorreria em nossas comarcas e, ao mesmo tempo, exigia, iracundo, as mudanças e transformações que não chegou a ver. Era implacável na defesa de suas ideias. E a essência de seu conteúdo continua inalterada, como inalterada continua sendo a urgência de suas demandas.

Defendeu com tenacidade juvenil a certeza de que o futuro das nossas gentes - e não apenas dos brasileiros, certamente os mais alheios, mas de todos os moradores dessa parte do mundo - está inevitavelmente vinculado à necessidade de assumir nossa identidade latino-americana, ao mesmo tempo tão una e tão diversificada.

Acreditava, com fé de peregrino, que fazemos parte de uma determinada realidade atemporal e são muito mais nossos pontos de encontro que de separação. E se angustiava profundamente com a obtusa resistência, sobretudo brasileira, de entender que, separados, não somos nada nessa América de todos nós.

Hoje, o que ele dizia integra o repertório de palavras da solenidade pomposa dos discursos oficiais. Mas, naquele tempo, eram palavras peregrinas de um obstinado.

Muita coisa mudou, é verdade, e ele não esteve nem está aqui para ver. Mas, apesar de tanta mudança, ainda estamos a léguas e léguas do que ele esperou a vida inteira para começar a ver - e não viu.

No Brasil de seu tempo, e também nos de depois, Darcy foi quem melhor incorporou a consciência da latinidade, a visão da Pátria Grande. Soube dimensionar o espaço, o peso e a responsabilidade do Brasil entre todos os outros países que, como peças individuais, as pequenas pátrias de cada um de nós, formariam juntos, ou juntos deveriam formar, o grande mosaico da Pátria Grande, a de todos.

Assim viveu seus anos de andarilho exilado: atuando nos países que lhe deram abrigo, participando do cotidiano, dos processos políticos, culturais e sociais. Quis entrar fundo - e entrou - na realidade, entendê-la, para poder lutar para transformá-la. De cada país onde viveu trouxe marcas definitivas. Em cada um deles deixou suas marcas. Muitas delas permanecem, profundas.

Sua maneira de ver o mundo e viver a vida rejeitava a contemplação distante e estéril, a serenidade dos conformados, o silêncio dos omissos.

Quis entender - e entendeu, e depois explicou - os processos de formação da América Latina a partir do nosso ponto de vista. E se negou sempre a renunciar ao direito de ter um olhar próprio, interior, sobre esse nosso continente.

Insistiu, até o fim, em acreditar na necessidade urgente e perene de transformações profundas na região, para que alguma vez nos seja possível ser o que podemos ser, e não o que quiseram que fôssemos.

Muitos dos processos reclamados por ele foram e estão sendo implantados, ainda que de maneira incipiente, e com falhas que com certeza o irritariam profundamente - na mesma profundidade com que ele seria capaz de tratar de entender e sugerir correções. Povos que pareciam condenados a séculos de humilhação infame tratam de tomar seus destinos nas mãos.

Pela primeira vez em décadas e décadas a América Latina vive uma etapa, em suas diversas latitudes, de recusa à negação e de aposta na reivindicação. Os humilhados e abandonados de sempre tratam de encontrar as brechas para construir seu futuro.

Darcy Ribeiro foi um homem de paixões incendiadas, e a América Latina, a Pátria Grande, foi uma de suas paixões permanentes.

Sim, é verdade: desde que ele se foi, naquele fevereiro aziago de 1997, muita coisa mudou no Brasil e na América Latina. E para melhor. Mas, se não tivesse ido embora, ele estaria, turbulento e urgente, pedindo mais, e mais. Reivindicando um presente negado por décadas, arfando para apressar um futuro que acreditava merecido.

Certa vez, ouvi dele uma frase definitiva: "Na América Latina, seremos todos resignados ou indignados. E eu não vou me resignar nunca".

Cumpriu o prometido. E a nós cabe a tarefa de honrar essa indignação, essa memória. De mostrar que finalmente tomamos consciência de que podemos ser autores e protagonistas da nossa história, nosso destino, nossa vida.

Eric Nepomuceno é escritor e tradutor, autor de "Coisas do Mundo" (Companhia das Letras), "O Massacre" (Planeta) e "Antologia Pessoal" (Record)