Por Eric Nepomuceno | Para o Valor, do
Rio
Já lá se vai um bom tempo - em
fevereiro agora serão 16 anos - que Darcy Ribeiro cometeu a suprema
indelicadeza de nos deixar. Tinha 75 anos. Foi antropólogo (dizia que seus
melhores tempos foram os que passou entre indígenas na Amazônia, quando era o
mesmo jovem impetuoso que soube ser até o fim), professor, ensaísta polêmico,
romancista, político, vice-governador de Leonel Brizola no Rio, quando
implantou a escola pública de período integral, agora tão copiada pelos mesmos
que tanto a criticaram naquela época. Foi discípulo do general Rondon, defendeu
os índios brasileiros com todas as suas forças.
Além disso, antes do golpe militar que
em 1964 instaurou uma ditadura que o levou à prisão e ao exílio, foi
ministro-chefe da Casa Civil, ministro da Educação e criou - com uma equipe
especialmente brilhante de sua geração, uma geração que efetivamente soube
pensar o futuro - a Universidade Nacional da Brasília (UnB), da qual foi
reitor.
Durante seu longo exílio peregrinou
pela América: Uruguai, Chile, Venezuela, Costa Rica, Peru, México. Assessorou
Salvador Allende em Santiago e Juan Velasco Alvarado em Lima, durante a
frustrada revolução dos militares peruanos que entre 1968 e 1975 tentou mudar o
país. Foi consultor da ONU. Foi tudo isso e muito mais. Dizia que era, acima de
tudo, educador.
Morreu senador da República. Cada vez
que penso no que ele fez e viveu, chego à conclusão que 75 anos foi um tempo
demasiado curto para tanta coisa. Mas assim era ele.
Quis entender o Brasil. Quis revelar o
Brasil, a si mesmo e aos brasileiros. Até o último suspiro viveu com a angústia
dessa tentativa, com a urgência dessa frustração. Esse esforço descomunal está
em toda a sua obra, dos estudos antropológicos aos ensaios sobre nossa
história, passando pela sua atuação política e pelos romances. Senão, o que
seria "Maíra", o que seria "O Mulo", puras tentativas de
entender, explicar e denunciar um país de barbaridades e esperanças imensuráveis?
O resumo desse esforço sem fim está
registrado no seu derradeiro livro, "O Povo Brasileiro". É, talvez,
seu mais complexo e completo voo para entender os mecanismos que, durante
séculos, impediram nosso país de ser o que poderia e podia ser.
Quis também entender a América Latina.
Era um inquisidor insaciável, que disparava perguntas ao tempo, aos
contemporâneos, à história, a si mesmo.
Sua obra sobre nossas comarcas -
"As Américas e a Civilização" ou "O Dilema da América
Latina" são referências permanentes há décadas - ajudou a formar gerações
de mentes inquietas continente afora. Continua sendo mais estudado, debatido e
cultuado nos países hispânicos do que nesta nossa medíocre mesquinhez.
Foi o mais latino-americano dos
intelectuais brasileiros, sempre tão distantes e distanciados de seus vizinhos.
Em outubro, para celebrar os 90 anos que ele não chegou a cumprir, a Fundação
Darcy Ribeiro, com a Editora da UnB e a Fundação Biblioteca Nacional, publicou
uma nova edição de seu livro "América Latina: a Pátria Grande".
São textos escritos entre meados dos
anos 70 e princípios dos 80, tempos de turbilhão, quando a maioria de nossos
países sufocava debaixo de ditaduras de maior ou menor ferocidade, mas ferozes
todas, outros padeciam o tormento de guerras civis genocidas e uns poucos, como
ilhas isoladas, viviam democracias pressionadas e ameaçadas.
O mais impressionante desse pequeno
volume é que, passadas décadas, e apesar da natural defasagem de alguns dados e
da transformação de algumas vertentes da realidade, continua sendo a prova da
capacidade de Darcy ser um visionário, um ardoroso defensor da inexistência do
impossível.
Em vários aspectos, o que está nesse
livro mostra que, ao disparar respostas e perseguir perguntas, Darcy antecipava
o que ocorreria em nossas comarcas e, ao mesmo tempo, exigia, iracundo, as
mudanças e transformações que não chegou a ver. Era implacável na defesa de
suas ideias. E a essência de seu conteúdo continua inalterada, como inalterada
continua sendo a urgência de suas demandas.
Defendeu com tenacidade juvenil a
certeza de que o futuro das nossas gentes - e não apenas dos brasileiros,
certamente os mais alheios, mas de todos os moradores dessa parte do mundo -
está inevitavelmente vinculado à necessidade de assumir nossa identidade latino-americana,
ao mesmo tempo tão una e tão diversificada.
Acreditava, com fé de peregrino, que
fazemos parte de uma determinada realidade atemporal e são muito mais nossos
pontos de encontro que de separação. E se angustiava profundamente com a obtusa
resistência, sobretudo brasileira, de entender que, separados, não somos nada
nessa América de todos nós.
Hoje, o que ele dizia integra o
repertório de palavras da solenidade pomposa dos discursos oficiais. Mas,
naquele tempo, eram palavras peregrinas de um obstinado.
Muita coisa mudou, é verdade, e ele
não esteve nem está aqui para ver. Mas, apesar de tanta mudança, ainda estamos
a léguas e léguas do que ele esperou a vida inteira para começar a ver - e não
viu.
No Brasil de seu tempo, e também nos
de depois, Darcy foi quem melhor incorporou a consciência da latinidade, a
visão da Pátria Grande. Soube dimensionar o espaço, o peso e a responsabilidade
do Brasil entre todos os outros países que, como peças individuais, as pequenas
pátrias de cada um de nós, formariam juntos, ou juntos deveriam formar, o
grande mosaico da Pátria Grande, a de todos.
Assim viveu seus anos de andarilho
exilado: atuando nos países que lhe deram abrigo, participando do cotidiano,
dos processos políticos, culturais e sociais. Quis entrar fundo - e entrou - na
realidade, entendê-la, para poder lutar para transformá-la. De cada país onde
viveu trouxe marcas definitivas. Em cada um deles deixou suas marcas. Muitas
delas permanecem, profundas.
Sua maneira de ver o mundo e viver a
vida rejeitava a contemplação distante e estéril, a serenidade dos conformados,
o silêncio dos omissos.
Quis entender - e entendeu, e depois
explicou - os processos de formação da América Latina a partir do nosso ponto
de vista. E se negou sempre a renunciar ao direito de ter um olhar próprio,
interior, sobre esse nosso continente.
Insistiu, até o fim, em acreditar na
necessidade urgente e perene de transformações profundas na região, para que
alguma vez nos seja possível ser o que podemos ser, e não o que quiseram que
fôssemos.
Muitos dos processos reclamados por
ele foram e estão sendo implantados, ainda que de maneira incipiente, e com
falhas que com certeza o irritariam profundamente - na mesma profundidade com
que ele seria capaz de tratar de entender e sugerir correções. Povos que
pareciam condenados a séculos de humilhação infame tratam de tomar seus
destinos nas mãos.
Pela primeira vez em décadas e décadas
a América Latina vive uma etapa, em suas diversas latitudes, de recusa à
negação e de aposta na reivindicação. Os humilhados e abandonados de sempre
tratam de encontrar as brechas para construir seu futuro.
Darcy Ribeiro foi um homem de paixões
incendiadas, e a América Latina, a Pátria Grande, foi uma de suas paixões
permanentes.
Sim, é verdade: desde que ele se foi,
naquele fevereiro aziago de 1997, muita coisa mudou no Brasil e na América
Latina. E para melhor. Mas, se não tivesse ido embora, ele estaria, turbulento
e urgente, pedindo mais, e mais. Reivindicando um presente negado por décadas,
arfando para apressar um futuro que acreditava merecido.
Certa vez, ouvi dele uma frase
definitiva: "Na América Latina, seremos todos resignados ou indignados. E
eu não vou me resignar nunca".
Cumpriu o prometido. E a nós cabe a
tarefa de honrar essa indignação, essa memória. De mostrar que finalmente
tomamos consciência de que podemos ser autores e protagonistas da nossa
história, nosso destino, nossa vida.
Eric Nepomuceno é escritor e tradutor,
autor de "Coisas do Mundo" (Companhia das Letras), "O
Massacre" (Planeta) e "Antologia Pessoal" (Record)