Esta
coletânea tem como objetivo principal apresentar e desenvolver algumas
possibilidades metodológicas para a análise de espetáculos músico-teatrais
(ballet e ópera) e de filmes, explorando algumas das conexões entre a antiguidade
clássica e a nossa própria sociedade. Temas da história e da mitologia
clássicas vêm servindo como inspiração para autores, compositores, diretores em
suas obras há séculos; tais obras são sucessos de público e de vendas, são
vistos, ouvidos, lidos, funcionam muito bem em termos de entretenimento e
formam um grande filão da chamada indústria
cultural. Nos espetáculos músico-teatrais, a presença de temas da
antiguidade quase se confunde com sua própria história, e no cinema ocorre o
mesmo; e a presença de temas da antiguidade ou baseados na antiguidade
atualmente no cinema e nos espetáculos é notória; esses espetáculos constroem
um público consumidor da antiguidade, mas, principalmente, uma nova
antiguidade, ressignificada em cada momento.
Pensando apenas nas últimas
décadas, denota-se uma presença muito intensa desses temas em nosso mundo, e
acreditamos que historiadores e outros estudiosos podem e devem se ocupar da
análise de como diferentes sentidos são produzidos e encenados nessas obras,
como os seres humanos recebem essas informações visuais, auditivas, narrativas
etc.; como os temas são recebidos e modificados em cada momento, dentre outras
questões possíveis.
Todos os autores da coletânea são
historiadores antiquistas e, unificando
os estudos apresentados está o método utilizado, a análise semiótica de
espetáculos, que trabalha especificamente os aspectos narrativos dos
espetáculos. A semiótica do espetáculo é ainda incipiente no Brasil, e a vertente
de semiótica narrativa utilizada foi escolhida por sua ótima aplicação aos
espetáculos selecionados e sua adequação aos objetivos perseguidos, dada a
complexidade dos espetáculos músico-teatrais e do cinema. Isso porque, à
exceção de peças e filmes experimentais ou deliberadamente não narrativos, os
espetáculos músico-teatrais narram uma história nos palcos ou nas telas e
seguem, querendo ou não, tradições artísticas e estéticas há muito
estabelecidas. Esta perspectiva teórica é útil quando as conexões entre as
obras culturais que envolvem diferentes períodos de tempo são examinadas e
interpretadas. Consequentemente, a abordagem crítica de espetáculos e filmes que
parte da pesquisa acadêmica tem de atentar para o fato de que aquilo que
modernamente chamamos de “intertextualidade” se torna cada vez mais fascinante
de se analisar.
Ao mesmo tempo, é
preciso perceber que toda compreensão é uma construção criativa, pois uma obra
ou um tema passam de um contexto cultural a outros, e novos sentidos vão sendo
incorporados a eles, sentidos que jamais poderiam ser antecipados por seu autor
ou por outros leitores e audiências. Novos autores e espectadores fazem
conexões, eliminam ou superam barreiras, criam sentidos com base no seu
conhecimento tácito do mundo em geral e das convenções literárias e artísticas
em particular. Um espetáculo, seja de que tipo for, é sempre um convite para a
construção de novos sentidos, que depende das questões que surgem a partir do
nosso enquadramento cultural. Nesta coletânea, procuramos descobrir as questões
que a própria obra, cada obra, tentava responder, em seu tempo e lugar, em
nosso diálogo com a história. Nossa perspectiva presente sempre envolve uma
relação com o passado, e, ao mesmo tempo, o passado só pode ser compreendido em
termos da limitada perspectiva do presente. Assim, acreditamos que esta
coletânea interessará não apenas aos especialistas em história antiga ou áreas
correlatas das humanidades, mas também aos amantes do balé, da ópera e do
cinema.
2. Conte-nos um pouco sobre as suas trajetórias
profissionais, e de que forma ocorreu o processo de organização desta obra.
As análises de
espetáculos que apresentamos neste livro foram concebidas a partir da
experiência de seus autores em pesquisas diversas, cuja base metodológica gerou
um curso de extensão universitária realizado na Universidade Federal Fluminense
(UFF), nascido da iniciativa do Prof. Ciro Cardoso, com base em sua grande experiência
teórica e prática na análise de espetáculos para fins de pesquisa
historiográfica, e no qual todos os autores da coletânea ministraram uma ou
duas aulas. A experiência em pesquisa e ensino de história do
Prof. Ciro Cardoso foi, portanto, determinante. Em 1997, o Prof. Ciro lançou
uma obra voltada à aplicação metodológica de análises semióticas aos estudos
históricos, o livro Narrativa, Sentido,
História¸ no qual apresenta e explica diversas vertentes metodológicas para
uso de historiadores, com muitos exemplos, e o capítulo “História e Análise de
Textos”, na coletânea Domínios da
História. Tais exemplos são referências para quem lida com métodos
semióticos na pesquisa e no ensino.
Nossa maior preocupação foi com a
utilidade desta coletânea para
estudantes, professores e pesquisadores, ao fornecer uma base de acesso segura à
análise semiótica dos espetáculos músico-teatrais. Assim, dividimos o livro em
três partes. A primeira parte traz desde uma síntese das fases sucessivas das
concepções do teatro moderno e contemporâneo e do desenvolvimento da semiótica
em geral até a semiótica do espetáculo em particular. Esta seção inclui um
capítulo sobre o desenvolvimento do cinema como espetáculo e das
especificidades da linguagem cinematográfica em relação a outras formas de
espetáculos, e das trajetórias das teorias e análises do cinema, apresentando
elementos para a análise do cinema de estrutura narrativa. A segunda parte traz
exemplos de análise de espetáculos músico-teatrais, especificamente uma ópera –
Orfeu e Eurídice, de Gluck - e duas
versões do ballet Espártaco, a
primeira de Khachaturian, escrita em 1954 e filmada em 1977, com
o Corpo de Baile do Teatro Bolshoi, e a versão de Seregi (1968), filmada em
1990, com a companhia The Australian
Ballet. A terceira parte traz exemplos de análise de três filmes: Cleópatra (DeMille, 1934), Júlio César (Burge, 1969) e Satyricon (Fellini, 1969). Optamos,
portanto, por espetáculos e filmes e fácil acesso para o leitor, de distintas
tendências e estilos, e que são, também, clássicos.
3. Quais as dificuldades maiores para a pesquisa no
país? E de que forma esta se desenvolve atualmente na área?
O
aumento do interesse pela antiguidade e por temas vinculados, de um modo ou de
outro, à antiguidade é notório no Brasil. De fato, o interesse pela antiguidade,
em maior ou menor grau, nunca se extinguiu, mas, durante décadas, designadamente
nas universidades, os estudos e os temas antiquistas foram praticamente
marginalizados nos currículos, com base em visões e ações preconceituosas –
intelectualmente fracas e enfraquecedoras, como sói acontecer – e, mesmo,
reacionárias dos departamentos de ensino brasileiros. Pesquisadores
e estudiosos de história antiga, mas também de filosofia, de arqueologia, de
literatura, das línguas grega, latina etc., bem como uma nova percepção das
recepções e ressignificações de temas e imagens da antiguidade em áreas como
tão diversas como a psicanálise, a antropologia, as artes, a arquitetura,
dentre outras, tiraram os estudos da antiguidade do ostracismo curricular e
científico brasileiro e incrementaram o interesse das novas gerações. Atualmente,
os estudos da antiguidade são uma das áreas mais criativas das ciências humanas.
Por isso, preferimos pensar nas possibilidades da pesquisa sobre a antiguidade,
pois as dificuldades que a área encontra não são muito diferentes das
dificuldades encontradas por outras áreas do conhecimento. A história antiga,
em particular, é uma disciplina acadêmica versátil, capaz de combinar métodos
solidamente estabelecidos com a abertura necessária a novas abordagens da
cultura clássica e de suas tradições, o que é muito promissor no Brasil.
4. Qual interesse maior em publicar o livro? Quais
as expectativas?
Nossa
intenção premente é
de contribuir para a pesquisa e o ensino da história, chamando a atenção para a
importância dos clássicos para a cultura atual, a presença da antiguidade nos
palcos e no cinema e as novas perspectivas que os espetáculos músico-teatrais
podem trazer tanto para a pesquisa historiográfica quanto às ciências humanas
em geral. Uma das nossas maiores finalidades é demonstrar o que pode resultar
de uma abordagem como esta, visando à compreensão de nossas relações com o mundo
antigo.
Nas ciências
humanas o ensino não pode ser separado da pesquisa, e a análise dos
espetáculos pode abrir novos caminhos para ambos. Os espetáculos músico-teatrais e
o cinema são certamente bons meios para despertar a sensibilidade em relação
ao passado, ao encenarem uma cena do passado ou da literatura antiga. Se a
apreciação de nossa própria cultura — incluindo nossa cultura popular — pode
ser feita mediante o exame das principais formas de arte visual, da dança, da
música, do teatro e do cinema, a inclusão da análise de espetáculos na pesquisa
e nos currículos escolares já está plenamente justificada, e os aspectos
científicos, educacionais e estéticos desta inclusão para pesquisadores,
professores e estudantes só tendem a aumentar. Compreender nossas conexões com
a antiguidade é um ótimo meio para a compreensão de nosso próprio mundo.