1. Como surgiu a ideia de unir os temas
Geografia e Cinema neste livro? E em que medida os temas se entrelaçam?
Desde minha especialização em Sociologia Urbana, na UERJ,
estive estudando o cinema a partir de uma análise espacial. Lá estudei as
representações das cidades no cinema, desde suas origens. Depois, no mestrado,
me interessei em estudar as representações fílmicas da cidade do Rio de
Janeiro: a simbiose entre natureza e urbano na capital fluminense fascinou um
conjunto extenso de pintores, cronistas, fotógrafos, toda sorte de artistas e,
é claro, cineastas. Na tese de doutorado e agora, com o livro, estou mostrando
representações dos lugares que, identificados como dotados com natureza, são
rebaixados a categorias como primitivo, exótico, selvagem... Meu interesse é
mostrar o quanto pelos filmes se tem formas de narrativa contundentes que
reificam um olhar hegemônico, de forte base eurocêntrica, que trata povos,
culturas, paisagens e lugares em extrema alteridade.
A Geografia é uma ciência que tem o
espaço e de saída é importante perceber que o cinema produz formas particulares
de espaço-tempo. Isso já seria motivo suficiente para a disciplina ter o cinema
como objeto de análise, e até mesmo o consagrado David Harvey analisou por isso
dois filmes, “Blade Runner” e “Asas do Desejo”, no seu mais famoso livro,
“Condição pós-moderna”.
Meu interesse mais específico, no
entanto, são as formas de discurso geográfico. São notórias as monografias
regionais francesas que narravam as singularidades de cada região. E ainda é
muito presente na disciplina a tarefa de ir a campo e descrever uma paisagem.
Ao mesmo tempo, temos uma geografia intimamente ligada à cultura de massa e à
cultura de viagem que faz algo muito parecido até hoje, mas de forma bem mais
ampliada: revistas como a National Geographic e documentários do Discovery
Channel estão a todo momento nos falando de um “mundo selvagem” contraposto a
uma preconcepção de civilização. Guias de Viagens, sempre cheios de mapas,
ilustrações e descrições, tornam os lugares do Oriente e dos Trópicos
“exóticos” e consagram a superioridade das paisagens da Velha Europa, por
exemplo. É um olhar viciado sobre o Outro, sobre o que é considerado diferente,
mas é um olhar geográfico. Assim como os filmes, que para mim não contêm
geografia, eles SÃO GEOGRAFIA. São geografia que constroem a diferença como
alteridade.
2. Quais foram as dificuldades
encontradas durante o processo de desenvolvimento da pesquisa?
Por incrível que pareça, convencer as
pessoas, inclusive os geógrafos, de que o trabalho é sério. Anos de discussão
sobre pós-modernidade e pós-colonialidade e ainda há muitos que acham que a
ciência deve ser de um só jeito, que há objetos dignos de serem estudados e
outros não. Faço uma análise de discurso que no fundo fala da capacidade de
criação geográfica e do quanto a Geografia é um discurso de poder bastante
propício para a naturalização de hierarquias e violências. Os filmes fazem isso
porque os filmes são uma forma massificada de narrativa geográfica. Mas há quem
faça com esse tipo de trabalho o mesmo que as representações que analiso
promovem: tratam a diferença como algo da ordem do primitivo e do inaceitável.
A psicanálise nos ensina que a diferença é sempre uma denúncia. E sempre se
paga um preço por ser visto como diferente.
3. Quais são os filmes analisados na obra e
que critérios foram utilizados nessa escolha?
O cinema mostra essas representações
geográficas de subalternização do Outro em vários tipos de filmes, mas os de
aventura e de terror o fazem de uma forma muitíssimo forte. Há dois conjuntos
de filmes no livro, com o que chamo de “personagens geográficos”: numa primeira
parte, analiso todos os filmes da trilogia original do Indiana Jones e as três
versões existentes para “King Kong”. São filmes de aventura. Quero mostrar a
partir do Indiana Jones narrativas que legitimam práticas de colonialidade, a
intervenção ocidental violenta como solução para o mundo. Eu tinha uma
lembrança muito forte da infância de ter me apavorado assistindo a “Indiana
Jones e o Templo da Perdição” na televisão, e esse meu pavor tinha origem na
representação extremamente estereotípica dos indianos no filme, todos dominados
por uma deusa maligna.
Com o King Kong, ao contrário, queria mostrar narrativas
sobre a invenção desse Outro subalterno, o quanto a ligação com a natureza
credita primitivismo a lugares, paisagens e povos. O filme original é extremamente
racista, mas o que me fez decidir mesmo foi ter assistido ao remake do Peter
Jackson e ver o quanto ele mudou a cena da chegada dos brancos à
Ilha da Caveira. Ele sabia muito bem o que estava fazendo, e relê o King Kong
original tentando a todo momento denunciar e se distanciar do racismo do
primeiro filme.
Na outra parte do livro eu utilizo
personagens que estão em filmes que se passam no Brasil de modo a ver como o
Brasil se encaixa nesse tipo de narrativa. Preferi utilizar filmes de terror.
Daí eu relacionar King Kong com a cobra de “Anaconda” e o arqueólogo Indiana
Jones com o médico Zamora do polêmico filme “Turistas”, sobre roubo de órgãos
num Brasil totalmente distópico. O doutor Zamora é meu personagem preferido do
livro.
4. Conte-nos um pouco da sua trajetória
profissional, e de que forma esta pesquisa influenciou e influencia a sua
carreira.
Minha formação original é em
arquitetura e urbanismo. Arquiteto nunca fui. Fiz muitos trabalhos em
planejamento urbano e regional, mas cada vez mais exerço menos a profissão. Abracei a
Geografia e me apaixonei por ela. Dessa formação talvez tenha ainda forte um
olhar mais atento à estética. No entanto eu não olho para a produção estética
com encantamento. Arquitetura é linguagem e discurso. Cinema e Geografia
também. É importante então olhar para a produção arquitetônica, cinematográfica
e geográfica e entender os discursos nem sempre explícitos que estão por trás
das obras. Esse tem sido meu trabalho.
5. Há novos projetos atualmente?
Tenho um projeto sobre novas
tecnologias da informação e comunicação e manifestações políticas no espaço
público. Comecei a pesquisa logo depois dos protestos da Espanha e nem
imaginava que iríamos ver o que foi junho de 2013 no Brasil. Mas como tenho um
especial interesse por linguagem e discurso, acabei muito focado nas Marchas
das Vadias (em protesto à violência contra as mulheres) do Rio de Janeiro.
Tenho já artigos publicados e espero escrever um livro sobre o quanto há um
diálogo entre o corpo feminino e a paisagem carioca nessas marchas, que não há
dúvidas têm sido os protestos que mais utilizam estética e ironia como
política. O corpo desnudo é também a marcação de uma diferença no espaço. E a
diferença é sempre uma denúncia que sempre choca... E que infelizmente faz
gerar retaliações.