Por Daniel Russell Ribas
O mercado editorial é assombrado
por fantasmas. Afinal, as questões que se movem nesta área, tanto as
recorrentes quanto as pontuais, partem da mesma premissa: medo do desconhecido.
O desconhecido em iguais proporções real e metafórico. Afinal, quem é o público-leitor
de determinada obra? O que faz um autor ser publicado? Quem são os responsáveis
pela publicação de livros? Em suma: quem manipula as ferramentas que tornam
capaz a expressão? Existe uma fronteira definida, mas cheia de sutilezas entre
o mundo fantasmagórico e o do vivos nesta área.
É longa e tortuosa a estrada
entre um manuscrito na gaveta e uma eventual publicação. Quando o livro como
objeto está exposto em prateleiras e em artigos de publicações literárias,
parece que se trata de força de vontade. E o que torna essa ilusão permanente
após tantos séculos após o surgimento da impressão? Acredito que seja o fato de
que um ato simples na aparência possa ter um impacto tão considerável. Afinal,
desde que seja alfabetizado, uma pessoa é capaz de escrever. A atividade da
escrita exige mais do que o ato mecânico. É um jogo intrincado, cujas regras
costumam ser anunciada durante a partida. Não antes. Entre elas, o fato de que
é preciso desaparecer de modo que seu trabalho possa existir.
A verdade é que o autor não
existe para a maioria dos leitores. Com exceção de seu meio social, o escritor
é uma criatura usualmente desconhecida. A não ser que se trate de uma
personalidade famosa por outra mídia, como o musical ou o televisivo, é bem
provável que não seja reconhecido na rua, mesmo sendo um best-seller. Vira um
fantasma, esta entidade invisível cuja presença só é notada por suas ações e
não por si mesma. Alguns autores ganharam fama pela reclusão, como Rubem
Fonseca e J.D. Salinger. A ironia reside no fato de, por ser uma atividade
artística, a literatura atrair pessoas atrás de atenção.
Todos almejam a admiração de seus
pares. Logo, se cercam e procuram manter contato com aqueles que julgam que
poderão levá-los ao merecido reconhecimento, de editores de casas prestigiosas
a escritores premiados. Para os autores que optaram pelo afastamento, é esta
decisão que aumenta a aura em torno de deles. A inacessibilidade do alvo de sua
afeição o torna ainda mais desejoso. Por conta de seu prestígio e atitude incomum
em um meio que funciona como uma vitrine de maneiras variadas, queremos
conhecê-los.
Quem é o escritor? Antônio
Xerxenesky brinca com a questão da identidade do autor em seu livro de contos A página assombrada por fantasmas. Em
seu conto “Esse maldito sotaque russo”, o narrador é um detetive literário que
descobre a real presença por trás dos textos de seu ídolo Thomas Pynchon. Por
mais absurda que soe à primeira vista, a proposta ganha sentido quando
refletimos a respeito. O primeiro é que o contato de ambos com os consumidores
e a maioria dos produtores da cadeia editorial é quase o mesmo: nenhum. O
segundo surge do fato do autor não existir. Embora fisicamente alguém digite as
palavras, o leitor não sabe quem é essa pessoa. Não a conhece e, em certas ocasiões,
nem deseja. O receptor quer ser tragado para algo que o retire de sua realidade
e o mergulhe em um estado de puro prazer e fascínio intelectual e emocional. O
formato da aparição poderia ser o de uma celebridade qualquer que não faria
diferença.
Assim, se pode dizer que o limite
que separa o autor do leitor seria a necessidade intrínseca da obra ganhar vida
própria. O texto funciona como um pedágio, em que ambos pagam o preço da
entrega. O autor larga sua criação para que outros a adotem, a tomem para si. É
uma transferência de posse. O outro pai deixa de existir, se tornando uma mera
inscrição na capa e na folha de rosto. Como numa família em que um pai é
genético e o outro por afiliação, esses apenas conversam em ocasiões
específicas. Seja num lançamento ou numa troca de mensagens, a comunicação é
restrita e objetiva. “Adorei o seu livro”, seguido pelo cortês, "Muito
obrigado".
O outro lado da moeda é mais
complicado. A barreira entre o leitor e o autor é tanto criativa quanto social.
Como em toda sociedade, há um hierarquia a ser superada. Esta define desde
superficialidades, como um livro de graça, a convites mais substanciais, como freelas de revisão e tradução a funções
editoriais. Também fornece público. Uma editora amiga minha mencionou certa vez
que os lançamentos são responsáveis por 90% de vendas de sua casa. Quando o
autor novato alcança algum mérito na área, é através de uma divulgação e/ou
distribuição razoáveis. Logo, sua presença passa a ser notada por si entre os
membros. Ele deixa ser um fantasma.
A passagem se torna mais fácil se
o candidato possui alguma conexão no mercado; seja por trabalho, família ou
amizade. A razão para isso vai além de mero nepotismo. Há tantos originais de
qualidade variante que se torna improvável optar pelo mais qualificado sempre.
Há um grau de risco grande na edição de livros. É necessário apostar pelo
seguro na maior parte das vezes para que os pequenos, os leitores anônimos na
transição para autores, possam encontrar seu espaço. Os livros realmente especiais
são raros. E o seu livro, caro autor novato, pode não ser um dessas exceções.
E, caso seja, não vai ser apenas seu talento que bancará a publicação.
Para conquistar a atenção de um
mercado cada mais inflacionado por produtos e centrado em si, é preciso se
esforçar. A fronteira pode ser rompida, como constantemente é. Daí, a função do
best-seller no macro-organismo editorial e, em outro aspecto, da rede de
contatos. Afinal, nenhum livro se torna uma obra-prima sem este ser invisível,
o leitor. Sem que você veja, será a atitude dele, comprando e disseminando seu
trabalho, que dará vida à criatura e ao criador. E sua resposta terá impacto
direto na confiança que o editor depositou em alguém com poucos ou nenhuma
credencial no meio. Embora forte na área e naqueles que se mantém informados a
seu respeito, o editor cederá espaço para o autor e a obra. Uma definição seria
um funcionário de fronteira, uma
entidade translúcida: invisível para o público e brilhante em seu meio.
No mercado editorial, há um mar
de fantasmas aguardando pela sua encarnação. A relação entre escritores e
editoras é, por regra, oscilante. Muitas vezes, um agente surge como elo para
ligar estes universos distintos. Ele é o cartão de visitas humano, aquele
relacionado no meio. Sua função será pegar este autor infante e o conduzir
pelos corredores do labirinto editorial. A qualificação dele poderá ser o fator
decisivo para uma editora arriscar um financiamento que, dependendo do autor,
pode ser muito custoso. Nos últimos anos, tivemos casos bastante documentados
de medalhões que deixaram suas casas editorias e, através de uma série de
negociações, conseguiram um local novo para seu catálogo chamar de lar. O
agente, ao contrário dos outros elementos da cadeia, é aquele que deve
desaparecer. Através da discrição, ele tornará o projeto uma realidade e sairá
de cena. Sua permanência, assim, se torna pontual.
O último fantasma de que me
lembro, é aquele atende por esse nome, mas em inglês. Uma figura
cuja definição é misteriosa até mesmo entre os membros da área. Nos últimos
anos, surgiram dois filmes cujo protagonista era um ghostwriter: um suspense apropriadamente chamado de O escritor fantasma e a adaptação
cinematográfica do romance de Chico Buarque Budapeste.
Enviei perguntas para a editora Cristiane Costa e a escritora Carla Mühlhaus a
respeito deste profissional. A partir das respostas, comecei a enxergar o
ghostwriter como uma espécie de anti-autor e autor supremo: é alguém cujo
trabalho precisa ser de qualidade, mas que não pode ser visto.
Segundo Costa, “não há uma
formação específica para esse profissional. Ao mesmo tempo, existe uma demanda
por ele. E aí surge o lado mais perigoso da falta de reconhecimento. Afinal, se
ele fez um bom trabalho, ninguém deve saber.” Como Mühlhaus questionou:
"como provar experiência, se ele não pode mostrar nada que escreveu?"
No caso, por ser incapacitado de montar um currículo de trabalhos nesta área,
ele apresentaria sua qualificação como autor. Logo, o motivo por muitos serem
provindos da atividade jornalística.
O ghostwriter, dos personagens
que compõem esta rede, é aquele que nunca sairá da fronteira. Sua sobrevivência
depende disso. Ele deve ter a arrogância do autor, o otimismo do leitor, a
cautela do editor e a discrição do agente. E, ao contrário de todos esses,
jamais poderá colher os frutos de seu trabalho, exceto em mais serviço. Ele é o
mensageiro com livre passagem entre a barreira da publicação e a do anonimato.
No entanto, ao contrário dos outros, sem residência fixa em nenhum desses
locais.
Daniel Russell Ribas nasceu em 1983. Criado no Rio de Janeiro e
apaixonado por Copacabana. Formou-se em Jornalismo na PUC-Rio. Já escreveu
roteiros e contos. Trabalha na Editora Oito e Meio e organiza uma antologia
erótica para a editora Vermelho Marinho. É Fluminense.