Por Rafael Cal
Era
o final do ano. E no final do ano todos os lugares estão cheios.
Evitou
os shoppings enquanto pode. Comprou presentes pela internet. Fez encomendas: a
revendedora conhecida ficou em êxtase. A mãe e as tias ficariam depois.
Mas
teve que encarar o monstro. Sempre resta alguma coisa. Sempre falta comprar
aquele presente. Praquela pessoa. Presente que você não encontra em qualquer
lugar. Pessoa chata.
Entrou
no inferno.
Não
foi de carro. Primeiro, o trânsito não andava. Segundo, nunca havia vagas.
Terceiro, não dirigia. Depois do caos e do calor, chegou, afinal.
Ao
entrar, teve uma sensação forte. Por que o ar condicionado não estava ligado?
Foi até um segurança. Pensava no presente. Muita gente passando por ele. O
segurança disse que estava enganado. Estava ligado.
Deixou
o jovem de uniforme falando sozinho. Seguiu. Seu destino ficava no final do
corredor. Pensava no final.
Passou,
no caminho, por outro rapaz uniformizado. Perguntou. O rapaz pensou um pouco.
Consultou o rádio. Não, não podia estar ligado. O rapaz discordou. Disse que
estava muito cheio. O shopping. Ele também parecia estar.
Enquanto
ele falava, pensou na temperatura do ambiente. E pensou que o jovem rapaz
usando uniforme azul marinho era bem intencionado. Pensou também que de boas
intenções o inferno estava cheio. O shopping também. Riu. O segurança não
entendeu e ele foi adiante. Pelo corredor.
O
cheiro do ambiente era pesado. O ar condicionado deve estar desligado, disse a
uma menina no balcão de informações, um pouco antes da loja em que ia comprar o
presente. Era bonita. Quando ela se virou para falar com a colega, os olhos
dele acompanharam sua bunda. Pensou em um livro que tinha lido. Riu. De novo. E
foi embora antes da resposta.
Chegou,
enfim, a porta da loja. Não conseguiu avançar. Sentiu-se um Dante do século
XXI. Sem musa alguma, no entanto. Parou.
Estava
cheio demais. A loja também. O ar condicionado não funcionava. Ninguém estava
muito preocupado com isso. Queriam comprar.
Foda-se
o presente.
Foi
tomar um café.
Entrou
na cafeteria e sentou no banco perto do balcão. Pediu um espresso e reclamou do
ar desligado. Olhou para o lado e viu um homem sentado. Percebeu que ele mexia
a boca. Como se estivesse falando. Mesmo sem entender exatamente o que homem
dizia, balançou a cabeça e sorriu concordando.
Não
conseguia pensar muito bem. O cheiro era forte. Estava com fome. Tanta fome que
comeria um pedaço da parede.
Não
comeu. O ar condicionado estava desligado. Todos pareciam ignorar tal
fato. Ainda assim, não havia trauma suficiente.
Concentrou-se
no café. Bebeu o espresso. Devagar. Estava quente. Como o resto.
O
homem ao lado fez outro comentário. Não entendeu, mais uma vez. Mas percebeu
que ele rabiscava alguma coisa no guardanapo. Talvez um desenho.
Acenou
com a cabeça e quase sorriu. O garçom disse ao homem que tudo aquilo que estava
acontecendo havia sido previsto. Tudo estava na embalagem do cigarro. Foi
quando ele parou por um momento.
Olhou
bem.
Parou
o olhar no homem por um instante. Não podia ser.
Não,
não podia ser.
O
garçom se foi e ele fitou o homem sentado. Pensou no Lourenço Mutarelli.
Parecia. Mas ele não estaria ali, ao seu lado. Olhou de novo.
Não.
Era
uma época infernal. Ele não estaria ali.
Até
que parecia.
Mas
não podia ser. Personagens não são os autores. São invenções. Apenas. Que não
existia isso. Pensou que era tudo idiotice sua. Devorara todos os livros dele.
Conhecia desde os quadrinhos.
Não,
não podia ser.
Olhou
de novo pro que o homem rabiscava no guardanapo. Não conseguia enxergar. Não
conseguia ouvir suas palavras.
Não,
não podia ser.
Pensou
em sua mulher. Ela havia dito qual era seu problema. Era tão criativo que se
perdia em suas próprias fantasias. Talvez tivesse razão. O calor, a obsessão, o
cheiro, o espresso, o pensamento sobre comer um pedaço da parede.
Sendo
ou não, o homem cansou daquele cara esquisito ao seu lado. Deixou o dinheiro e
o guardanapo sobre o balcão e foi. Ele resolveu ir também. Sem presente algum.
Foi
quando ele conseguiu ver o que estava rabiscado.
Nada
mais tenho a oferecer, senão a decifração da embalagem e histórias cada vez
mais amargas.
Rafael Cal é cosmonauta frustrado, escreve e, nas horas vagas, é professor de história. Publica quase todo dia no fazendoumdrama.blogspot.com