terça-feira, 20 de março de 2012

O dia em que encontrou Lourenço Mutarelli


Por Rafael Cal

Era o final do ano. E no final do ano todos os lugares estão cheios.

Evitou os shoppings enquanto pode. Comprou presentes pela internet. Fez encomendas: a revendedora conhecida ficou em êxtase. A mãe e as tias ficariam depois.

Mas teve que encarar o monstro. Sempre resta alguma coisa. Sempre falta comprar aquele presente. Praquela pessoa. Presente que você não encontra em qualquer lugar. Pessoa chata.

Entrou no inferno.

Não foi de carro. Primeiro, o trânsito não andava. Segundo, nunca havia vagas. Terceiro, não dirigia. Depois do caos e do calor, chegou, afinal.

Ao entrar, teve uma sensação forte. Por que o ar condicionado não estava ligado? Foi até um segurança. Pensava no presente. Muita gente passando por ele. O segurança disse que estava enganado. Estava ligado.

Deixou o jovem de uniforme falando sozinho. Seguiu. Seu destino ficava no final do corredor. Pensava no final.

Passou, no caminho, por outro rapaz uniformizado. Perguntou. O rapaz pensou um pouco. Consultou o rádio. Não, não podia estar ligado. O rapaz discordou. Disse que estava muito cheio. O shopping. Ele também parecia estar.

Enquanto ele falava, pensou na temperatura do ambiente. E pensou que o jovem rapaz usando uniforme azul marinho era bem intencionado. Pensou também que de boas intenções o inferno estava cheio. O shopping também. Riu. O segurança não entendeu e ele foi adiante. Pelo corredor.

O cheiro do ambiente era pesado. O ar condicionado deve estar desligado, disse a uma menina no balcão de informações, um pouco antes da loja em que ia comprar o presente. Era bonita. Quando ela se virou para falar com a colega, os olhos dele acompanharam sua bunda. Pensou em um livro que tinha lido. Riu. De novo. E foi embora antes da resposta.

Chegou, enfim, a porta da loja. Não conseguiu avançar. Sentiu-se um Dante do século XXI. Sem musa alguma, no entanto. Parou.

Estava cheio demais. A loja também. O ar condicionado não funcionava. Ninguém estava muito preocupado com isso. Queriam comprar.

Foda-se o presente.

Foi tomar um café.

Entrou na cafeteria e sentou no banco perto do balcão. Pediu um espresso e reclamou do ar desligado. Olhou para o lado e viu um homem sentado. Percebeu que ele mexia a boca. Como se estivesse falando. Mesmo sem entender exatamente o que homem dizia, balançou a cabeça e sorriu concordando.

Não conseguia pensar muito bem. O cheiro era forte. Estava com fome. Tanta fome que comeria um pedaço da parede.

Não comeu. O ar condicionado estava desligado. Todos pareciam ignorar tal fato. Ainda assim, não havia trauma suficiente.

Concentrou-se no café. Bebeu o espresso. Devagar. Estava quente. Como o resto.

O homem ao lado fez outro comentário. Não entendeu, mais uma vez. Mas percebeu que ele rabiscava alguma coisa no guardanapo. Talvez um desenho.

Acenou com a cabeça e quase sorriu. O garçom disse ao homem que tudo aquilo que estava acontecendo havia sido previsto. Tudo estava na embalagem do cigarro. Foi quando ele parou por um momento.

Olhou bem.

Parou o olhar no homem por um instante. Não podia ser.

Não, não podia ser.

O garçom se foi e ele fitou o homem sentado. Pensou no Lourenço Mutarelli. Parecia. Mas ele não estaria ali, ao seu lado. Olhou de novo.

Não.

Era uma época infernal. Ele não estaria ali.

Até que parecia.

Mas não podia ser. Personagens não são os autores. São invenções. Apenas. Que não existia isso. Pensou que era tudo idiotice sua. Devorara todos os livros dele. Conhecia desde os quadrinhos.

Não, não podia ser.

Olhou de novo pro que o homem rabiscava no guardanapo. Não conseguia enxergar. Não conseguia ouvir suas palavras.

Não, não podia ser.

Pensou em sua mulher. Ela havia dito qual era seu problema. Era tão criativo que se perdia em suas próprias fantasias. Talvez tivesse razão. O calor, a obsessão, o cheiro, o espresso, o pensamento sobre comer um pedaço da parede.

Sendo ou não, o homem cansou daquele cara esquisito ao seu lado. Deixou o dinheiro e o guardanapo sobre o balcão e foi. Ele resolveu ir também. Sem presente algum.

Foi quando ele conseguiu ver o que estava rabiscado.

Nada mais tenho a oferecer, senão a decifração da embalagem e histórias cada vez mais amargas.

Rafael Cal é cosmonauta frustrado, escreve e, nas horas vagas, é professor de história. Publica quase todo dia no fazendoumdrama.blogspot.com