Por Rosangela Dias
Era a primeira vez que íamos a uma festa juntos. Já estávamos
namorando há mais ou menos 3 meses, mas só tínhamos ido a cinemas, jantares em
casa de amigos meus e algumas exposições, coisas assim. Considerava este o
momento solene, quando iríamos ser vistos como casal consolidado em festa na
casa de amigos dele. Talvez lá eu encontrasse conhecido comum, algum ex
namorado e/ou desafetos e é sempre bom ter homem ao lado. O mundo é pequeno (às
vezes) e a cidade não tão grande assim.
Nos conhecemos em um antiquário do centro. Nem gosto muito
deste tipo de loja, mas fui acompanhando amiga que dizia ser bom lugar para
encontrar homens sozinhos, com dinheiro e disponíveis. Lá estava mais por
amizade do que por crença no que ela afirmava. Olhava distraidamente os objetos
amontoados em ordem e com arrumação totalmente desconhecidas por mim, quando
ouvi alguém perguntando às minhas costas: “Você também gosta de jogos de café
para bodas de prata?” Aí percebi o jogo de xícaras brancas com bordas de prata,
bastante graciosas, em cima de uma mesa escura. Voltei meu rosto em direção a
voz e o vi, sorri sem graça e nem me lembro do que falei ou se o fiz.
Nada nele chamou minha atenção, não muito alto, uns 45 anos,
meio gordinho. Diante do meu silêncio, ou quase, ele insistiu, “Você sempre vem
aqui? Também gosta de antiguidades?” Dei-me conta de que era preciso responder
nem que fosse por educação. Disse-lhe que não conhecia muito sobre antiguidades,
mas gostara da loja e que, na verdade, estava acompanhando uma amiga. “Qual?”
Ele perguntou. Dei uma olhada ao redor e vi que a mesma tinha sumido em meio
aos quadros, lustres, santos, louças, móveis e luminárias. “Ih. Cadê ela?” E
comecei a rir nervosamente. Foi a deixa, Henrique, é este seu nome, apresentou-se
e convidou-me para tomar um café em cafeteria próxima até minha amiga voltar
sabe Deus de onde. Fomos.
Contou-me que era professor de inglês e que gostava de
xícaras de café, fazia coleção e tinha para mais de 100 de vários países e
tipos. Sempre ia naquele antiquário porque dava sorte. Foi lá que conheceu o
corretor que lhe vendera seu apartamento, ainda na planta. Interessante,
interessante mesmo não o achei mas... ele era agradável e depois de certa idade
não dá para ser muita seletiva. Daí fiquei ali escutando. Minha amiga não
voltou e Henrique acompanhou-me até em casa e marcamos de nos reencontrar. Não
lhe contei sobre o caso recém rompido, a morte da cachorra, as desavenças
familiares, a faculdade de letras interrompida e minhas dificuldades financeiras.
Mas ele falou do método de ensino de inglês que estava criando, do apartamento
que acabara de comprar, da família numerosa que vivia em outra cidade. Eu ouvi.
Continuamos
nos encontrando, fomos para a cama e ele sempre empolgado com seu método de
inglês, agora quase transformado em livro com dois volumes: um caderno de
gramática e um de exercícios. Levou-me para conhecer o apartamento sendo
construído em bairro longe do centro e meio deserto, mas com futuro promissor,
segundo ele; “Várias pessoas de nível estão se mudando para cá.” Henrique
comentou circunspecto, apontando o andar do apartamento em frente ao esqueleto
cinza e falando em voz alta para abafar o som das britadeiras e do misturador
de concreto. A sua família agora estava bem. O pai fizera um AVC, mas se
recuperava de forma surpreendente, dissera o médico. Continuei sem falar de
como era difícil viver com dinheiro contado, da alegria que me dava ir à praia
durante a semana. De como eu desejava voltar a estudar e de como era difícil eu
fazer algo do qual minha mãe se orgulhasse.
Mas hoje
havia uma festa em casa de amigos dele e nós iríamos juntos. Henrique ficou de
me pegar às nove da noite em casa. Arrumei-me toda, fiz cabelos, unhas,
arranjei dinheiro emprestado e comprei vestido novo florido. Às nove em ponto
(pontualidade é seu forte), ele chegou. Fomos. A festa era numa casa grande em
bairro cheio de árvores e casarões. Perguntei-lhe o motivo da festa; ”Não há
razão específica para a festa, entende? São colegas do curso em que trabalho
que resolveram comemorar a vida, todos estarem empregados e progredindo na
vida, coisas assim.” “Ah!” Respondi.
Entramos no salão da festa e olhei em volta. Havia muita luz
para uma festa, mas ainda era cedo, nove e meia. À direita, encostada na parede,
uma mesa com pães a metro. “Marisa! Marisa!” Ele gritou. Uma moça alta de unhas
vermelhas, cabelos negros, curtos e lisos, de copo na mão e sorriso de rosto
inteiro veio até nós dançando e dançando continuou. Pensei que ele fosse
apresentar-me a moça, mas não o fez. Ela começou a chamá-lo com os dedos para o
meio da pista de dança e lá foi o Henrique. Fiquei ali sem entender nada. Ao
redor desconhecidos comendo e olhando na pista Marisa e Henrique em dança
furiosa algo dos anos disco bem no meio de um salão ainda vazio em início de
comemoração sem razão nem porquê. O que eu faço agora? Pensei. Resolvi ir ao
banheiro. A festa ainda estava a caminho, mas já havia fila no banheiro
feminino indicado por setas a partir do salão. Duas moças conversavam em voz
baixa. O banheiro vagou e elas me cederam a vez. Havia um espelho grande lá
dentro e eu me achei tão feia, pequena, sem graça. Lembrei-me dos conselhos de
mamãe “Nunca se pinte, a gente não tem culpa da cara que tem, mas tem culpa da
pintura que coloca.”, ”Só ande com moças mais feias que você. Comparações podem
ser fatais.”
Saí do banheiro e eles continuavam dançando freneticamente.
Ela rodopiava e avançava em sua direção. Ele parado como um porteur da melhor
qualidade, ora se aventurando em passos relativamente elaborados. Uma meia roda
ao redor deles havia se formado incentivando-os. As musicas se sucediam e
todas, impreterivelmente, eles dançavam. Decidi ir embora, amanhã era dia de
feira, precisava acordar cedo.
Saí da festa de forma lenta, desci as escadas da casa na
esperança de que Henrique viesse atrás de mim. Na porta, um taxi chegava
trazendo convidados. Pedi ao taxista para me levar até algum ponto de ônibus
próximo. “Ih, brigou com o namorado, já sei! Os homens de hoje em dia não valem
nada!” E engatou uma história comprida da qual não lembro.
Os dias se passaram e o telefonema, o e-mail, um cartão ou um
bilhete de Henrique não chegaram. Triste? Não sei se fiquei.
Hoje na porta havia um ramo de flores e dois envelopes. Um
grande em papel linho sem remetente. Dentro, os dizeres:
Sr. Avelino Souza dos
Santos (in memorian) e Sra. Tereza Souza dos Santos & Sr. Victor Gdansk e
Sra. Aurélia Gdansk
convidam para o enlace matrimonial de seus filhos
Henrique & Marisa a
realizar-se no dia blá, blá, blá...
No envelope menor o remetente era o noivo.
“Desculpe-me pelo que aconteceu na festa. Foi mais forte que
eu. Espero que vá ao meu casamento, de coração.
Meu livro já está no prelo, logo você receberá o convite de
lançamento. O apartamento fica pronto mês que vem, vendi a coleção de xícaras
para terminar de pagá-lo. Meu pai faleceu no dia seguinte à festa e você foi
muito importante para mim.
Beijos, Henrique.”