Por Ludmila Rodrigues
Eu não sei. Não sei por que dei pra ele. Eu sempre fui muito sozinha. Não fui preparada para a vida como todo mundo, sabe? Eu tive, sei lá, um processo diferente do outros. Nunca fico só, entende? Já me basta a solidão de dentro. Uma vez me disseram viúva negra, come e mata! Come e mata... Eu tenho nojo, entende? Eu tenho o mais profundo nojo que uma pessoa pode sentir, eu não sei nem como te explicar. Ele gordo, nu, peludo... Exibindo o corpo obeso só porque já tinha sido vinte quilos mais gordo, cheio de caroços nos braços e nas costas, todo apaixonado por mim, explodindo de alegria porque eu tava lá, nua, gozada na cama dele. Ah, eu tava fragilizada, completamente acabada... É claro que eu não ia ficar revendo o mesmo filme em casa, em prantos: eu não sou assim. Se o outro não me queria, eu tava buscando alguém que me quisesse.
Mas é sempre assim, sabe? Eles entendem mal, me pedem em namoro... Pra mim tanto faz um sim ou não, eu termino respondendo o sim que é mais agradável. Os amigos, radiantes, começaram a perguntar se estávamos felizes, radiantes porque, lógico, nunca tinham visto o encalhado com alguém, eu fazia cara de paisagem, puta, puta, estilhaçada por dentro. Eu ficava espumando com a cara estúpida dele que respondia que sim, que tava feliz, esplêndido, que tudo ia ficar bem, que um dia eu me entregaria, que ele ia trabalhar com força nisso. E dizia ela não parece uma princesa com esses cachinhos loiros? Eu tentava perguntar por que ele achava que eu era dele mesmo depois de eu ter dito que ele não sonhasse em ouvir um eu te amo da minha boca, que isso nunca ia acontecer, que ele era um tapa buraco, que ridículo, meu deus. Mas ele queria fazer panquecas doces, comemorar qualquer bosta, se mudar pra minha casa e o caralho.
Não sei por que eu tenho um ódio especial por esse, dentre tantos caras. Só pode ser o cheiro de peixe podre que me vem entre as pernas em todo santo período de ovulação, começou depois daquele pau sujo. Ou os chocolates que ele me trazia numa caixa com um laçarote em fita, tão patético, dizendo trouxe um pouco de todos porque não sabia de qual você gostava. Eu gosto do mais simples possível, do preto maciço, sem inovações, sem menta, morango, framboesa, pedaço de não sei o quê. Mas não é aí que está minha raiva: é na caixa com o imenso laçarote pela manhã, ao lado do travesseiro.
Aí eu lembro da tremedeira tão asquerosa, ele ficava nervoso com minha presença e dizia que era o pulso, que era de família. Tremia servindo o vinho, segurando um guardanapo, tremia a língua enorme no beijo de olhos ora fechados, ora esbugalhados para ver se tava fazendo certo. E eu pensava olha a minha cara de quem desvirgina alguém, seu filho da puta — desvirginando-o.
Lembro da banha no rosto, das rodas de suor na camisa que ele mesmo passava a ferro querendo também passar as minhas, dos caroços com pus e me pergunto como eu pude ser tão cretina comigo, como eu pude deixar que aquilo acontecesse.
Ele peidava dormindo, e eu chorava, chorava na janela com o cigarro entre os dedos, prendendo a fumaça nos pulmões, querendo assassiná-lo por ser tão nojento, tão desgraçado de nojento. Ficava olhando o céu a noite toda. É tão bonito o céu, né?
Ludmila Rodrigues nasceu em 21 de janeiro de 1991, em Salvador, na Bahia. Contista e poeta, teve seu trabalho publicado em antologias e revistas de diversos lugares do Brasil. Em 2012, publicou O rosto na xícara, seu primeiro livro — que abrange poemas e prosa poética.