quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Resenha de 'Dança ao pé da letra – do romantismo à Belle Époque carioca'

Resenha de Dança ao pé da letra – do romantismo à Belle Époque carioca, de Marina Martins. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012.

Por Marta Peres

Muitos autores já teceram relações entre literatura e música, literatura e cinema, literatura e artes plásticas, literatura e filosofia, o que demonstra que as letras dão “panos para mangas” em muitas áreas em que transbordam para além de seu domínio. Se o mesmo não ocorre com a dança, o livro da bailarina, coreógrafa, pesquisadora e professora da UFRJ, Marina Martins, vem preencher esta lacuna com originalidade. Apontando clássicos da literatura brasileira da virada dos séculos XIX para o XX, “Dança ao Pé da Letra”, reúne, ao brincar com as palavras, estes dois campos aparentemente distantes da expressão artística, pelo pé. Fazendo jus ao título, embora tenha sido adaptado de sua dissertação de mestrado em teoria do teatro na UniRio (sua tese de doutorado ainda não foi publicada, mas estamos aguardando ansiosamente), o livro não tem a característica habitualmente enfadonha dos textos acadêmicos, talvez por sua atenção ao... ritmo, matéria prima da dança.

Ao mesmo tempo em que é apresentada uma análise profunda de conteúdos, pode-se dizer, 'dançantes', de obras literárias criteriosamente selecionadas, a curiosidade do leitor acerca das mesmas é instigada, à medida que ele se informa sobre a vida e o comportamento das personagens, seus dramas, entremeados aos volteios de suas danças, parte fundamental de sua diversão, lazer, busca por parceria amorosa, por aceitação social. Mais que um simples ornamento, a força da dança é demonstrada enquanto marca indelével da própria narrativa, ao se apontarem diferentes gêneros e elementos culturais relevantes a eles imbricados – os saraus, os bailes, o rosto colado, o piano, a valsa, a quadrilha, o luxo, o tango, o maxixe, a síncopa, a opereta, a ópera-bufa, o vaudeville, requebros e salamaleques, a burleta, o forró e o forrobodó, o teatro de revista, o carnaval, de rua e de salão, o lundu, a dança de roda e, finalmente, o samba, Tia Ciata, etcétera, etcétera...

Obras como “Diva” e “Senhora”, de José de Alencar, “Moreninha”, de Joaquim Manoel de Macedo, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “A Chave”, de Machado de Assis, e a hilariante “A família Agulha”, de Luiz Guimarães Jr., abordam o caráter subversivo da valsa quando esta surgiu trazendo consigo a proximidade dos corpos, a paixão e sua vertigem. No caso de Eufrásia Sistema, vertigem fatal, pois a desengonçada personagem de Guimarães morre de tanto dançar!

Enfim, o livro de MM sinaliza o quanto a dança estava presente, não somente na literatura, mas na própria vida de uma sociedade mestiça, oscilando entre a busca da “distinção”, pela imitação do chic europeu, de preferência, francês - lançando mão aqui do conceito do sociólogo Pierre Bourdieu -, e a insistência sedutora dos ritmos oriundos da África.

Olhar para os passos, parte decisiva das tramas - para os pés que pensam enquanto os olhos falam - nos fornece observações a respeito do comportamento, regras sociais, desejos, satisfeitos ou não, de maneira que a dança acaba se desvelando uma metáfora plástica e sonora da vida naquele tempo.
Apesar da assustadora rigidez da moral, a poética dos movimentos dos corpos não nos deixa de trazer uma certa nostalgia daquilo que não vimos, ao imaginarmos a magia e o capital simbólico acumulados pelo piano, móvel-objeto da sala de estar, a melodia fantasiosa das moças casadoiras sobre ele debruçadas, o poder feminino do gesto das donzelas de aceitar ou não dançar com os rapazes que a cortejavam, se desejáveis ou não, tudo isso permeado pela necessidade de distinção das elites em relação às massas incultas e de pele “mais” escura, considerando a inevitável porém tácita mestiçagem geral da nação, e a onipresença vigorosa dos ritmos de origem africana alegrando de maneira ímpar esta cidade inusitada.

Em sua obra “Problemas da Poética de Dostoievski”, Bahktin desenvolve a ideia de “polifonia”, ao apontar que, nos romances do gênio russo, ao contrário do que se dá na maior parte daqueles considerados “monológicos”, as vozes dos personagens manifestam-se autônomas, como que dotadas de um espírito próprio, livre, independente de seu autor.

Podemos estabelecer uma analogia entre questões levantadas por Bahktin acerca de Dostoievski e o “Dança ao pé da letra”. Embora MM não tenha se proposto a analisar somente um autor nem a se deter propriamente no pensamento de suas personagens, mas sim num leque de obras nas quais a dança fornece o tom da escrita, podemos considerar que ela faz uma análise, não do verbal,  mas de seu discurso... coreográfico: este, sim, quem sabe, autônomo em relação aos próprios escritores, já que imersos no ritmo da atmosfera carioca da época.