Por Maria da Conceição Francisca Pires
A cultura, definida como a capacidade de pensamento simbólico, é parte
da verdadeira natureza do homem. A cultura não é suplementar ao
pensamento humano, mas seu ingrediente intrínseco (LEVI 1992).
da verdadeira natureza do homem. A cultura não é suplementar ao
pensamento humano, mas seu ingrediente intrínseco (LEVI 1992).
Em palestra proferida na Universidade Estadual de
Maringá, em 23/3/1996, Peter Burke utiliza a
obra do historiador suíço de meados do século XIX Jacob Burckardt, e do
holandês J. Huizinga, para apontar quatro aspectos que, a seu ver,
inviabilizariam uma aceitação contemporânea de uma história cultural nos
“moldes clássicos”.
Em linhas gerais Burke aponta as seguintes questões
como fundamentais para o reforço da necessidade de revisão da história cultural
no decorrer do século XX, a saber: 1) a necessidade de romper com uma história
da cultura dissociada da infraestrutura econômica e da estrutura política, ou
seja, uma história da cultura “suspensa no ar”; 2) a história cultural “tradicional”
parte do pressuposto da existência de consensos culturais; 3) “a ideia clássica
de cultura era estreita demais”; e 4) os moldes tradicionais da história
cultural produzida entre o século XIX e começo do XX não correspondem mais às
expectativas contemporâneas.
Com esse ponto de partida crítico, Burke defende a
premissa de que o que distingue a nova história cultural desse modelo
“clássico” seria a abrangência acerca da ideia de cultura que a caracteriza.
Além disso, para esse autor “Talvez fique mais claro dizer que a grande
inovação é a incorporação ou, ao menos, a tentativa de incorporar a vida
cotidiana na história cultural” (BURKE 1997, p. 5).
No debate que se desenvolveu na mesma mesa, após as
considerações de Peter Burke, o historiador Elias Thomé Saliba apresenta uma
intrigante e fundamentada crítica ao historiador inglês ao chamar a atenção
para questões “essenciais” que passaram ao largo das reflexões de Burke. Para
Saliba, os aspectos apontados por Burke correspondem apenas a “sintomas”, e o que
fundamenta a mudança no enfoque da história cultural é, especificamente, um
conjunto de “alterações do estatuto teórico na compreensão da cultura e da
história” (SALIBA 1997, p. 16). A revisão da história cultural tratou-se,
assim, de um processo de emancipação “de modelos que remetiam o social a outra
coisa e não a si mesmo”, desse modo a cultura passou a relacionar-se com a
totalidade histórica.
Um segundo elemento assinalado por Saliba diz
respeito aos novos contornos que são acentuados pela nova historia cultural à
dimensão cultural, de modo que ela torna-se “um estudo dos processos e práticas
das quais se constrói um sentido e se forjam os significantes do mundo social”
(SALIBA 1997, p. 12). Assim, em sua concepção a nova “missão” dos historiadores
da cultura seria “compreender como os homens do passado se compreendiam, como
eles se constituíam a si mesmos, à sua totalidade e à sua própria história”
(SALIBA 1997, p. 12).
Penso que as considerações de Saliba
sintetizam, de forma singular, as questões que explicam e justificam a
pertinência e ampliação dos estudos contemporâneos no âmbito da história
cultural.
Atualmente é extenso o número de trabalhos acadêmicos ligados a
história cultural. Sem me estender na discussão sobre os precursores dessa
forma de abordagem – os Annales e a sua contribuição para o
redimensionamento da noção de documento – em geral o que se observa nesses
estudos é a preocupação em acentuar as viabilidades teórico-metodológicas das
categorias que formam o patamar conceitual da história cultural.
Representações, imaginário, cultura, memória, sensibilidades, apropriação...
indubitavelmente, esses conceitos são o esteio da história cultural e orientam
os historiadores que adentram pelo amplo terreno da cultura, problematizando
seus estudos e demarcando o espaço historiográfico ocupado pela história
cultural como uma corrente estabelecida.
Respondem, assim, às críticas correntes durante as décadas de 1980 e
1990, período em que se destacaram no Brasil as pesquisas no âmbito da história
cultural, referentes ao seu estatuto teórico e epistemológico. A multiplicidade
dos enfoques que norteavam as premissas dos estudos em história cultural era um
segundo aspecto que suscitou críticas dos que percebiam a multiplicidade como
prova de “desacerto e incongruências” (VAINFAS 1997), e não como uma
característica de um campo de estudo que buscava colocar em relevo exatamente a
pluralidade das relações sociais e da cultura.
Em contrapartida, algumas tentativas de apontar os méritos da historia
cultural, parecem não ter obtido êxito, sobretudo quando se ancoraram em
designações como “refúgio das mentalidades” (VAINFAS 1997) e se ocuparam mais
em indicar seus campos temáticos, que em discutir os conceitos e o embasamento
teórico-metodológico que serviu de alicerce para esse campo de estudo.
Associada à definição conceitual, foi fundamental para demarcar a
contribuição da história cultural na renovação da pesquisa histórica e da sua
escrita a delimitação de um suporte metodológico próprio, que prima pela junção
de estratégias e que proporciona condições para que o historiador possa:
contrapor
opostos, apostando nas revelações possíveis desse enfrentamento; [...] de um
método detetivesco, que sairia do texto para encontrar outros discursos, em um
diálogo intertextual; de um método que prestaria atenção nos detalhes, nos
sintomas [...] (PESAVENTO 2008, p. 17).
Ao delimitar de forma mais clara sua base metodológica, a história
cultural respondeu aos reclamos de que “apesar de uma enxurrada de prolegômenos
e discursos sobre o método..., os franceses não elaboraram uma concepção
coerente de mentalités enquanto campo de estudo” (DARTON apud HUNT
2001, p. 12).
Um olhar panorâmico sobre as pesquisas recentes permite constatar a
inegável importância que essas têm demonstrado para o alcance das
sensibilidades, valores e códigos específicos de diferentes contextos
históricos e para o trabalho de reconstrução da memória política e cultural do
país. É o que se torna visível após a leitura de História cultural: ensaios
sobre linguagens, identidades e práticas de poder, livro publicado pela
editora Apicuri e organizado por William de Souza Martins e Gisele Sanglard.
Passado um pouco mais de um quarto de século de debates em torno dos
pressupostos que se tornaram o fundamento da história cultural, os nove artigos
que compõem esse livro contribuem de forma incisiva para demonstrar a
maturidade alcançada por esse campo de estudos. Em primeiro lugar, destaca-se a
preocupação em expor aos leitores os conceitos e metodologias empregadas,
problematizando-os através de diferentes exercícios empíricos. Aos conceitos
vitais para a história cultural, foram associados os de território, identidade,
subjetividades, poder, linguagens proporcionando a visualização da
reconfiguração assumida pela história cultural nos últimos anos.
Um segundo aspecto que singulariza o livro refere-se a bem sucedida
proposta interdisciplinar contemplada pelos trabalhos apresentados. Às
categorias analíticas próprias da história foram agregadas categorias de outras
disciplinas, como literatura, linguística, artes, antropologia, sem que
houvesse um ofuscamento do nosso reduto disciplinar. Assim, munidos de
conceitos tomados de empréstimos das outras disciplinas, os autores em questão
souberam aprofundar seus recortes e construir seus objetos de pesquisa
evidenciando aos leitores as posturas historiográficas assumidas.
Embora o título apresente a proposta de que o livro seja uma reunião de
“ensaios”, apenas os artigos “Encontros com a história cultural, a partir
do estudo das festas, das ordens religiosas e da santidade feminina no Antigo
Regime”, de William de Souza Martins, “Entre Tramas, jogos e ressonâncias:
reflexões sobre uma pesquisa em história cultural”, de Fabio Henrique Lopes, “Texto
e contexto em história e literatura: a crise do mito da democracia racial
brasileira”, de Jose Jorge Siqueira e “Cinema e história cultural”, de
Rosangela de Oliveira Dias, cumprem tal intento ensaístico.
Entretanto, o pequeno “desvio de rota” dos demais autores não compromete
o intuito de oferecer aos leitores resultados de pesquisas que englobaram
recentes categorias conceituais incorporadas pela história cultural e que
transitam com bastante desenvoltura por caminhos interdisciplinares,
sofisticando, sobremaneira, suas análises.
Como informado na apresentação do livro, em seus ensaios William de
Souza Martins e Fabio Henrique Lopes fizeram a opção de dialogar de forma livre
com referenciais nos seus respectivos campos temáticos. No primeiro caso, a
análise das festas no Antigo Regime encontrou aporte nas reflexões de Mikhail
Bakhtin e Peter Burke, e com extrema sutileza se aproximou dos estudos
antropológicos no que tange ao exame dos rituais, valores e normas que dão
sentido aos símbolos, apontando para as suas imbricações com as relações de
poder.
Também pensando nas redes de poder, o ensaio de Fabio Henrique Lopes,
por sua vez, transita com bastante desenvoltura pelas categorias desenvolvidas
por Michel Foucault para estudar a relação entre as práticas discursivas médicas
e as relações sociais, discutindo, através destas relações, a anatomia do
poder. O exame das relações entre práticas discursivas e tecnologias de
poder, reitera a afirmação de Foucault acerca das contingências históricas que
delimitam as formações discursivas. Finalmente, sua análise contribui para
ampliar o leque de alternativas para a compreensão das redes de poder através
de uma abordagem que prioriza as descontinuidades. É uma perspectiva que
corrobora com o pressuposto de que “nas relações de dominação, os dominantes
não anulam os dominados, ainda que haja desequilíbrio de força entre os dois
lados” (GOMES 2005, p. 24).
Os ensaios de Jose Jorge Siqueira e Rosangela Oliveira Dias, por outro
lado, dão visibilidade às potencialidades do texto literário e do cinema como
fontes do conhecimento histórico, em ambos os casos assinalando a importância
do rigor crítico no exame dessas fontes e da seleção dos conceitos para o
processo de decifração associado a uma atitude hermenêutica.
Siqueira inicia estabelecendo um profícuo diálogo com Luiz Costa Lima,
Jean Starobinsk e Antonio Candido. Em seguida, discute como o processo seletivo
dos conceitos é decisivo para que as questões e os problemas colocados abarquem
a multiplicidade dos sentidos que as fontes proporcionam. Como demonstrado pelo
autor, a seleção conceitual é uma etapa fundamental para valorizar e expandir
possibilidades que nem sempre são devidamente contempladas nessas fontes. Outro
importante debate promovido pelo autor refere-se à ação interpretativa do
leitor. Ladeando as reflexões de Roger Chartier acerca das questões que
envolvem a recepção e a leitura dos textos, o autor confere a essa prática um
estatuto de produção do conhecimento.
Rosangela Dias fundamenta parte de sua discussão nas colaborações de
Marc Ferro e através de um estudo de caso, discorre sobre as questões de fundo
que devem e podem ser consideradas – sem que suas recomendações representem um
cativeiro metodológico – para a realização da leitura histórica dos filmes,
assinalando a complexidade que envolve as relações de produção no campo
cinematográfico. Afinal, colocar em evidência o fato de que um filme é fruto de
“elementos cinematográficos e extracinematográficos” é fundamental para que se
torne possível apreendê-lo em sua totalidade (ROSSINI 2008).
Metodologicamente suas reflexões mostram-se de suma importância para
que se evite incorrer no equívoco comum, sobretudo, no ensino de história, de
efetuar uma repetição instrumentalizada da narrativa cinematográfica que exclui
as significações possíveis em seu interior.
Os artigos “Da valorização das favelas na década de 1920: uma reflexão
sobre o samba Não quero saber mais dela, de Sinhô”, de Romulo Costa Mattos, e “O
samba do crioulo doido: de manifestação cultural afro-brasileira em um
território étnico a símbolo da cultura nacional”, de Lúcia Silva, se aproximam,
em primeiro lugar, no tema eleito para apreciação, no caso as manifestações
culturais. Ambos acompanham a noção de cultura a partir dos pressupostos
desenvolvidos por E. P. Thompson, acentuando as contradições e fraturas
existentes dentro de um mesmo conjunto cultural. Comungam, por fim, de uma
perspectiva interdisciplinar, ostentando um rico intercâmbio com a
antropologia.
Estabelecem também um interessante link com o artigo de Ana
Maria Dietrich, “Repressão, controle e vida associativa social e cultural dos
imigrantes germânicos em São Paulo”, ao evocarem os indivíduos, as trajetórias
pessoais, as histórias de vida e as subjetividades para capturar universos de
sentido de grupos diferentes e distantes, que integram o campo do informal e do
popular. Os três autores usufruem com bastante desenvoltura do interesse da
história social pelos “de baixo”, incluindo em suas observações não apenas a
condição de classes, mas de etnia, gerações e as outras formações identitárias
que construíram suas identidades de forma diversa, valendo-se da cultura como
principal instrumento de coesão.
Os artigos “Cultura, sociedade e saúde no Rio de Janeiro durante a
Primeira República”, de Gisele Sanglard, e “Memórias de si, sentidos
revisitados: o Conselho Federal de Cultura e as comemorações em torno do
movimento modernista (1967- 1972)”, de Tatyana de Amaral Maia, constituem
exemplos preciosos da fértil proximidade que é possível estabelecer com a
história política ao explorarem outras dimensões do político, no segundo caso
especificamente pensando em termos de cultura política e política cultural.
Propõem um exame sobre as malhas do poder, ao mesmo tempo em que discutem o
caráter relacional que envolve as relações de poder.
Em comum os autores de História cultural: ensaios sobre linguagens,
identidades e práticas de poder expressaram a preocupação em pontuar o
conjunto de pesquisas referenciais que gabaritou e orientou suas interpretações
pessoais, bem como as metodologias empregadas no trabalho empírico.
O livro favorece a compreensão e visualização de práticas e grupos
considerados pela historiografia tradicional como marginais. Faculta ainda um
exame apurado acerca dos procedimentos empregados pelos mesmos para conferir
legitimidade aos suas ações, colocando em relevo aspectos que tangenciam
questões econômicas, mas que se alicerçam fundamentalmente nos referenciais
socioculturais dos atores em questão.
Desse modo, é um
livro que auxilia a dirimir as eventuais dúvidas que persistam quanto aos
conceitos e métodos da história cultural por explorar, com maturidade e
refinamento, o seu embasamento teórico-metodológico. Torna-se, portanto, uma
importante contribuição para os interessados em acompanhar de forma mais
próxima as mudanças, rupturas e também as permanências que caracterizam a
história cultural.
Maria da Conceição Francisca Pires é doutora em História e professora adjunta da UFRJ.
A íntegra das referências bibliográficas pode ser conferida em: http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista/article/view/454/325