terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Ars Moriendi


Por Valter Hugo Mãe

Dei a mão ao Lêdo Ivo para o ajudar a descer três degraus. Saíamos diante de um jardim lindíssimo. Ele disse que aceitava a minha mão com reservas. Não queria sentir-se velho. Eu respondi que não o fazia pela idade, fazia-o pelo deslumbre das vistas. Era possível que causasse tonturas.

Ficámos andando entre os canteiros, apenas gostando do fim de tarde, já mais fresco, a luz bonita, um sossego agradável. Ele estava muito contente. Os espanhóis recebiam-no com muito carinho e atenção. Ele sentia orgulho pelo trabalho do Martín López-Vega, o seu, e meu, tradutor e editor. Nós sorríamos. Estávamos encantados com a mariquice de ver plantinhas e flores. Éramos poetas, sensíveis, e eu gostava tanto da poesia dele que me esticava como quem tem brio na sorte.

Foi em Córdova. Eu queixava-me do calor, a fúria do sol. Ele, não. Achava que eu, por ser português, conhecia as pessoas todas de Espanha. Perguntava-me quem eram este e aquele, ficava admirado com a minha ignorância. Creio que, nessa altura, pensava em Portugal como um país de gente esquisita. Não lhe haviam ainda editado nenhum livro. Devia sentir alguma irritação com isso. Eu, confesso, sentia vergonha. Falava do calor, ele fungava, eu suava, tinha vergonha. Ele, esporadicamente, falava de Maceió. Parecia sempre estar prestes a voltar a Maceió. Como se fosse perto. Era, certamente, muito perto da sua cabeça.

De todo o modo, ficámos amigos. Havia uma natureza qualquer a conspirar a favor das nossas conversas e era simplesmente fácil ter assunto, gostar de ter assunto. Talvez por isso, a urgência desapareceu e ficou só uma qualquer estabilidade. Não tínhamos mais pressa para nada. Ver plantinhas e flores, ignorando a correria da agenda, a organização que andava sempre atrás de nós, era um bálsamo. Queríamos andar por ali como se tivéssemos direito à liberdade de andar por ali. E não queríamos mais nada. Estávamos bem.

Quando recebo do Martín a notícia da morte do Lêdo Ivo, exactamente em Espanha, percebo que, afinal, tudo na vida urge e que a estabilidade, como outra coisa qualquer, é sempre apenas um instante. Talvez me apazigue o ter escrito há poucos meses sobre a primeira antologia da sua poesia editada em Portugal. Talvez me apazigue que ali lhe tenha dito muito acerca do meu apreço. Guardo a satisfação de ele me ter lido e respondido, encantado com o meu encantamento. Mas isso não apaga a frustração.

Ia ser lindo que a morte fosse três degraus diante de um jardim lindíssimo. E que houvesse alguém a estender a mão. Não pelo medo de se cair, mas pela tontura do deslumbre. Ia ser lindo que o Lêdo Ivo morresse apenas assim, deslumbrado, e de nenhum outro modo.

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Valter Hugo Mãe é escritor português. Esta crônica foi publicada no jornal Público em 03/01/2013.
http://www.publico.pt/cultura/noticia/ars-moriendi-1579336