Por Valter Hugo Mãe
Dei a mão ao Lêdo Ivo para o ajudar a descer três degraus. Saíamos
diante de um jardim lindíssimo. Ele disse que aceitava a minha mão com
reservas. Não queria sentir-se velho. Eu respondi que não o fazia pela
idade, fazia-o pelo deslumbre das vistas. Era possível que causasse
tonturas.
Ficámos andando entre os canteiros, apenas gostando do
fim de tarde, já mais fresco, a luz bonita, um sossego agradável. Ele
estava muito contente. Os espanhóis recebiam-no com muito carinho e
atenção. Ele sentia orgulho pelo trabalho do Martín López-Vega, o seu, e
meu, tradutor e editor. Nós sorríamos. Estávamos encantados com a
mariquice de ver plantinhas e flores. Éramos poetas, sensíveis, e eu
gostava tanto da poesia dele que me esticava como quem tem brio na
sorte.
Foi em Córdova. Eu queixava-me do calor, a fúria do sol.
Ele, não. Achava que eu, por ser português, conhecia as pessoas todas de
Espanha. Perguntava-me quem eram este e aquele, ficava admirado com a
minha ignorância. Creio que, nessa altura, pensava em Portugal como um
país de gente esquisita. Não lhe haviam ainda editado nenhum livro.
Devia sentir alguma irritação com isso. Eu, confesso, sentia vergonha.
Falava do calor, ele fungava, eu suava, tinha vergonha. Ele,
esporadicamente, falava de Maceió. Parecia sempre estar prestes a voltar
a Maceió. Como se fosse perto. Era, certamente, muito perto da sua
cabeça.
De todo o modo, ficámos amigos. Havia uma natureza
qualquer a conspirar a favor das nossas conversas e era simplesmente
fácil ter assunto, gostar de ter assunto. Talvez por isso, a urgência
desapareceu e ficou só uma qualquer estabilidade. Não tínhamos mais
pressa para nada. Ver plantinhas e flores, ignorando a correria da
agenda, a organização que andava sempre atrás de nós, era um bálsamo.
Queríamos andar por ali como se tivéssemos direito à liberdade de andar
por ali. E não queríamos mais nada. Estávamos bem.
Quando recebo
do Martín a notícia da morte do Lêdo Ivo, exactamente em Espanha,
percebo que, afinal, tudo na vida urge e que a estabilidade, como outra
coisa qualquer, é sempre apenas um instante. Talvez me apazigue o ter
escrito há poucos meses sobre a primeira antologia da sua poesia editada
em Portugal. Talvez me apazigue que ali lhe tenha dito muito acerca do
meu apreço. Guardo a satisfação de ele me ter lido e respondido,
encantado com o meu encantamento. Mas isso não apaga a frustração.
Ia
ser lindo que a morte fosse três degraus diante de um jardim
lindíssimo. E que houvesse alguém a estender a mão. Não pelo medo de se
cair, mas pela tontura do deslumbre. Ia ser lindo que o Lêdo Ivo
morresse apenas assim, deslumbrado, e de nenhum outro modo.
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Valter Hugo Mãe é escritor português. Esta crônica foi publicada no jornal Público em 03/01/2013.
http://www.publico.pt/cultura/noticia/ars-moriendi-1579336