Em ‘Três ensaios de fala’, a artista plástica Leila
Danziger articula rescaldos da infância e rastros do exílio judaico em poemas
de rara sutileza em suas relações com a cultura, a política e a História
Por Mariana Ianelli* No Prosa & Verso do jornal O Globo, 12.01.13.
Entre inúmeros títulos de poesia lançados em 2012, que não passe despercebido
“Três ensaios de fala”, estreia da carioca Leila Danziger. Com a força de uma
obra maior, o livro revela a densidade de poemas que se foram cristalizando em
palavra há mais de 20 anos. Não se trata, portanto, de uma estreia
convencional, mas da transfiguração da matéria com que Leila trabalha no campo
das artes visuais desde 1987. Indispensável mencionar que também no ano passado
três mostras individuais da artista aconteceram no Rio de Janeiro: “Edifício
Líbano”, “Todos os nomes da melancolia” e “Felicidade-em-abismo”.
Essa transferência de matéria, ou
transfiguração de “destroços celestes” em imagem, de imagens em palavra,
remonta a uma espécie de solidariedade primordial entre memória e esquecimento,
opacidade e transparência, melancolia e felicidade. Para a poeta, interessam os
“pequenos impérios” que se elaboram silenciosamente nas “difíceis negociações/
entre o dentro e o fora”. Desses intercâmbios resultam vestígios, coisas
opacas, fragmentos reinscritos pela arte num tempo de lentidão e delicadeza que
o tempo dos imediatismos ignora. “Vanitas”, “Minima Moralia”, “Edifício Líbano”
são alguns títulos de obras visuais que nomeiam os poemas de “Três ensaios de
fala”, cuja capa traz também uma fotografia realizada pela artista, da
exposição “Todos os nomes da melancolia”. A escritura de Leila, em palavra e
imagem, vem desta outra ordem das coisas, que extrai do rescaldo da infância,
dos rastros do exílio de um povo, uma poesia de rara sutileza em suas relações
com a cultura, a política e a História.
Contemplando tais relações, e rebrilhando no livro como um de seus poemas
antológicos, “Edifício Líbano”, escrito em 2008, reconstrói um minarete que é
também um dos torreões da história familiar da autora: o espaço desde onde o
olhar se projeta para fora, para uma paisagem degradada que reflete, por um
espelhamento íntimo, os escombros da vida que ocupou esse edifício quando ali
moraram os avós e os pais de Leila, após deixarem para trás Charlottenburg, em
Berlim, nos idos de 1935. Esse lugar de Copacabana, morada e miradouro, que em
outros tempos sediou a Embaixada de Cuba, e que hoje abre suas janelas para a
comunidade de Pavão-Pavãozinho, abriga os jardins do Oriente onde “não há
pombas/ (...)/ mas gatos sobre carros/ e acenos discretos/ ao vencermos as
pedras/ a caminho do elevador”.
Diferentes tempos e geografias em atrito dão a ver um mundo que se equilibra
entre as coisas perdidas, que se salvam por não se deixarem aprisionar, e as
coisas reencontradas, que legam à autora o compromisso de ser uma guardiã de
afetos. Essa coexistência de tempos e a interlocução necessária com os objetos
da memória, que rebuscam em despojos da cultura judaico-alemã uma Jerusalém
perdida, aparecem continuamente no livro, a exemplo de “Dias temíveis” e
“Hebraico”, dois comoventes poemas em que Leila rememora nas letras do alfabeto
hebraico e em outros antigos papéis de arquivo a presença de seu pai. Vale
mencionar que esta Jerusalém perdida é ainda uma Jerusalém reencontrada pela
artista, que ali concluiu seu pós-doutorado em artes no ano de 2011.
A linguagem em seu poder de calar, ou ainda, de fazer falar os mortos, e o
trabalho meticuloso de debulhar a matéria a partir de seus elementos
testemunhais, hibridizando o poético e o biográfico, revelam o parentesco
profundo do livro com a poesia de Paul Celan e a narrativa compósita de W. G.
Sebald. A tarefa poética que aqui se coloca como responsabilidade e prece
silenciosa, que torna a poeta “a membrana que os une/ — nome, crianças, vozes,
areia”, vai se cumprindo à maneira daquelas “poderosas formas de vida/ que se
reproduzem/ em úmida comunidade/ desde o Levítico”. É a partir dessa trama
subterrânea, quase invisível, entre as ruínas da História, que se percebe a
esperança sobre a qual tudo se edifica.
Seção à parte ao final do livro, “Tel Aviv” reúne seis poemas em que se
constelam alguns dos mais caros motivos da transfiguração poética de Leila. Ali
onde o tempo é movimento e incompletude, está a felicidade. Tal como a menina
palestina num véu cor-de-rosa que a artista filmou certa vez em frente ao mar
de Tel Aviv, aparecem nesses poemas imagens que, em sua cristalina fragilidade,
são indestrutíveis, insubordináveis, como um grupo de crianças escavando na
areia e pássaros que atravessam a soleira da porta da varanda, atraídos pelos
sons da língua hebraica. Preservando essa “felicidade entre as coisas mudas”,
servindo-se da melancolia enquanto estratégia de resistência contra a
velocidade alucinada dos tempos, “Três ensaios de fala” reafirma, na poesia, a
mais refinada sutileza e densidade emotiva que há muito predominam na obra
visual de Leila Danziger.
*Mariana Ianelli é poeta e autora de “Almádena” e “Treva alvorada”
(Iluminuras)