Livro de memórias, escrita de si,
autobiografia, autoficção, não importa ─ o livro de Maria Christina Monteiro de
Castro é travessia do vivido, entre fatos e ficções, que nasceram em Belo
Horizonte, ou Sabará, e se estendem para o Rio de Janeiro, para Brasília, até
romper com as fronteiras do Brasil, em outros lugares, outros países. Por
enquanto agora não se reduz a mero relato de infância, juventude e maioridade,
individual ou subjetiva, mas se tece com fios que unem espaço e tempo de uma
família, de uma época do Brasil, numa tapeçaria de cores fortes, cuja costura
às vezes exibe os furos da memória, os fragmentos, as ficções da verdade, a
verdade das ficções. Uma vida escrita.
O leitor entra nas casas de portas abertas
onde viveu essa família de classe média alta, metáfora e metonímia de um Brasil
que vai sofrer pouco a pouco a desmontagem de seu romance familiar, a ilusão de
sua completude e coesão, principalmente aquela vivida nos anos da ditadura
quando a violência invadiu o interior das famílias e seus membros outrora
idealizados, vivendo sob o fascínio do pai brilhante, político de sucesso e a
mãe ancorada numa fé inabalável que ela sustenta até o fim.
Ficção e realidade se entremeiam como a
vida que as constrói com acontecimentos , sonhos e decepções. Não importa tanto
separar uma coisa da outra, impossível tarefa. Pode-se adivinhar quem é quem em
algumas passagens do livro, que, entretanto, é um romance à clef, um de seus
atrativos. Não há uma chave só, já que os personagens se condensam, carregando
características que pertencem a outros membros da família. São, antes figuras,
tipos que marcaram uma época em que a consciência política se juntava à
religiosa, à artística, que os tabus morais começaram a permitir a
homossexualidade, a divergência e a participação política dos jovens. Quem é
quem?
O início de Por enquanto agora é o cenário
da infância da narradora, menina inquieta que questiona tudo, aflige-se, sem
nunca se alienar na zona de conforto de uma vida aparentemente segura e
estável. Ela, Celina, as três irmãs, o pai, a mãe compõem uma família que
alimenta as discussões políticas, literárias (sobretudo), rodeando-se de livros
e de arte, acolhendo sempre amigos e parentes de seu mundo especial, dessas
Minas Gerais, do Rio de Janeiro e de Brasília. A primeira grande
mudança/travessia é o Rio, para onde é convocado o pai político, para morarem
num Leblon que parece longe da imagem do bairro sofisticado de hoje.
Em sua primeira página, ela já se
apresenta: "Convidada para a vida, a menina se descobriu inundada de
afetos ─ era tanta fala, tanta gente, tanto medo e tanta raiva, tantos sons e
cheiros, tanto reboliço ─como uma vertigem" e assim ela será pela vida
afora, com uma energia poderosa que a levará à escrita, sua saída, sua opção de
vida, confessada claramente.
Roland Barthes inventa o conceito de
biografema ─ traços, minúcias, objetos, encantos, pormenores ─ que apontam para
a vida de um escritor ou de quem quer que seja, seu traço, seu estilo, sua
marca, eu diria. Ouso afirmar de Christina/Celina que seu biografema é
"seu caderno pautado, de capa mole, de sessenta folhas"(p13). E,
acrescento a ele um vaticínio, numa exclamação, numa designação de dedo em
riste: "ô menininha complicada". Sim, pois complicados são os
escritores cuja vida não cabe na vida e extrapola para a escrita. Leitora
ruminante, diria Machado de Assis, aquela que rumina, pensa e repensa, grübler,
disse Walter Benjamin dos melancólicos, os nunca consolados de uma perda, de
uma nunca encontrada explicação para a vida. Disso é feita a literatura, não
aquela do puro entretenimento, mas a que inquieta, aflige, desacomoda.
A escrita de Maria Christina, entretanto,
não é só feita de perdas, ficaram resquícios, ficou uma imagem de desadaptação,
como ela mesma confessa: não se sentia uma filha acomodada, mulher casada
típica, nem uma mãe comum, normal, o que incomodava um pouco seus filhos. Ficou
a maravilha diante do mundo, a curiosidade, o humor (às vezes dolorido, mas,
humor), a ironia, a insatisfação diante das respostas óbvias, do senso comum.
Ficou alguma coisa do desejo de absoluto da mãe, da sofisticação intelectual do
pai. Dos livros, mil livros de sua biblioteca viajante, quase infinita,
borgeana. E as línguas e seu amor por elas: além do português, o francês, o inglês.
Sim, o escritor é, antes de tudo, um leitor: de livros, das pessoas, do mundo.
Olhos abertos, como os da menina Celina e seus cadernos de anotações, seus
diários que acabaram por construir este livro.
Aos poucos, os fios se desfazem, a garantia
de supostas certezas sofre os impactos de uma história violenta que foi a do
Brasil dos anos de repressão. O mundo fica embaçado e o olhar sobre as coisas
muda e ganha outro viés. Reverberações no tempo e no espaço transformam a
leitura do mundo, agora sem a nitidez previsível.
Apesar da escrita modulada pelo humor e a
ironia que apontam para uma sensibilidade transbordante e rica, em nuances
contraditórias, o livro se revela testemunho, autoficção memórias fraturadas.
Por enquanto agora não é um romance róseo, marcado pelas ilusões do início do
séc. XX. Pode-se falar de um romance de formação, num país que se destroça,
destroçando seus ideais e suas ilusões.
Nesse sentido Maria Christina dá testemunho
de uma época em que conviveu, além dos limites da família, com políticos do
tempo em que o pai foi chefe da Casa Civil do Presidente Café Filho. As
oportunidades que teve de conhecer ambientes privilegiados, entretanto, nunca
tiraram seu senso crítico e a forma familiar e mineira que a sua família nunca
abandonou: "Nunca se ouviu em nossa família, em qualquer situação ou
dirigido a qualquer pessoa o clássico Você sabe com quem está falando? Nada
neste livro é morno e ligeiro, a escrita é feita de paixão, numa linguagem,
entretanto, cuidada, ágil em suas descrições, forte diante das
situações-limite. Desde antes do início do livro, a escrita estava presente,
quando "a emoção transbordava, toda vez que perdia o ar porque não
entendia, tinha medo ou sentia mais do que aguentava". No final, a
permanência do desejo de escrita: "vou pegar meus cadernos e escrever.
Abrir-me para o que não vivo e desejo, o que pode estar à frente vejo como
possível ainda". E o tempo indefinido, descontínuo, inacabado com seus
furos, por enquanto, agora. Enquanto. O tempo não acabou.