Por Fabrício Brandão
Para quem se embrenha pelo pantanoso
terreno da criação literária, talvez não haja desafio maior do que adentrar as
alamedas do erotismo. E não é simplesmente isso. O dilema que é posto aqui
remonta à hercúlea tarefa de se transpor as muradas do óbvio e da gratuidade,
construindo uma narrativa que se firme apartada de elaborações banais e, por
assim dizer, descartáveis.
Se serve de consolo, há quem ainda consiga
materializar em palavras impulsos valiosos numa literatura que se digne a
decifrar certos esconderijos da carne. É quando um autor, utilizando-se de
recursos cuidadosamente arquitetados, consegue efeitos que redimensionam a
experiência de se estar vivo. Exemplo disso é o que acontece com Carnebruta
(Ed. Apicuri/ Oito e Meio), livro de contos de Rodrigo Novaes de Almeida. Nele,
o escritor, mais do que nos apresentar situações e cenários envoltos numa forte
carga sexual, propõe um percurso por outros tantos becos do homem.
Conduzindo uma obra esculpida em carne e
palavras, Rodrigo não nos conta boas novas nem tampouco atiça descobertas
próprias do instinto humano. Se a cada um de nós é dada a faculdade de conhecer
do próprio corpo um receptáculo portentoso do prazer, por outro lado, a mera
representação de um desfrutar dos sentidos dá lugar a uma constatação de que o
gozo maior se instala na crueza do ser.
Em Carnebruta, a pulsão sexual deixa de
lado o simplismo da contemplação e canaliza suas forças para cruzar certos
labirintos. E, assim, seu autor aposta em narrativas decididas, muitas vezes
diretas, viscerais e ácidas, como se a intenção fosse golpear as percepções dos
leitores mais desavisados. Não há espaço para devaneios, tampouco delírios
baratos. Nesta viagem, somos convidados a perceber alguns aspectos que põem em
xeque nossas vãs convicções, chacoalhando quaisquer enquadramentos que se
pretendam moralistas.
Rodrigo é, antes de tudo, um provocador,
tanto em seu modo de desarrumar os móveis da secular “casa dos costumes” quanto
pelo fato de celebrar as pequenas epifanias da carne nossa de cada dia. Um jogo
cênico vibra por entre seus contos, fazendo-nos crer que estamos diante de um
livro de imagens. Numa aproximação com o cinema, os relatos desfilam arremates
dignos de um bom curta-metragem. Seus personagens sabem tão pouco de suas
imprecisas trajetórias como qualquer mortal que se preze.
Engana-se quem pensa que Rodrigo Novaes de
Almeida, soando, alguns momentos, pornográfico, concentra seus esforços apenas
numa frente. O percurso em Carnebruta visita todo tipo de paisagem, desde a
mais cotidiana possível até aquela que é fruto de nossa projeção imaterial.
Nesse ínterim, há espaço para uma curiosa nostalgia do futuro, marcada em
passagens como as do conto inicial Valete-de-espadas. Nele, a “oportunidade
única de uma segunda vida” contrasta com as inúmeras mortes que podemos
experimentar quando nos achamos absolutamente vivos e respirando.
Com doses muito bem aplicadas de sarcasmo,
algumas passagens do livro têm um arremate que lembra Nelson Rodrigues,
sobretudo quando o assunto é a surpresa de certas revelações, encerradas no
porão da consciência dos personagens. No confronto com o mundo de aparências ao
qual estamos acostumados, Rodrigo posiciona o homem em toda a extensão de sua
autofagia, traído que está pelos sentidos e pela miopia inerente à existência.
Carnebruta é um roteiro de percursos que
retiram da vida seu véu sobejamente pudico. Demovendo excessos, seu autor forja
os idiomas da pele e os converte em instrumentos hábeis das diversas e
malfadadas travessias que fazemos. Mais do que desnudar a matéria que
habitamos, é a alma quem aparece, arranhada e nada impune, a flutuar nas águas
turvas do existir. Melhor assim, pois ao menos em parte estamos quites com
nossos subterrâneos.