quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Copo


Por Henrique Amud

Aquelas paredes gordurosas nunca ficariam totalmente limpas se dependesse dos clientes. Apenas o suficiente pra vigilância sanitária não multar ninguém. A sujeira traz um certo conforto, a certeza de que o bar não atrairá a clientela errada, os preços não subirão e a conta ainda pode ser pendurada. Samir preferia os horários de menos movimento, entre duas e quatro da tarde. Não que aqueles trinta metros quadrados ficassem lotados, mas ele não suportava os velhos bêbados discutindo em voz alta, tentando chamar atenção, olhando para os lados à procura de uma cabeça fazendo um gesto afirmativo. Nesses momentos, Samir conseguia vê-los através de sua visão periférica, esperando um milésimo de atenção - "Tô errado?" - para trazê-lo para a conversa, mas seu olhar fixava-se em algo ou alguém e os senhores bêbados caçavam outra cabeça nas redondezas.

Joca, desgostoso como todo o sempre, abriu a garrafa, serviu-lhe o copo e voltou a assistir televisão. Quando foi abrir a segunda garrafa, percebeu Samir tão desgostoso quanto ele, talvez até mais. "Que foi, macho?", perguntou numa mistura de sotaque cearense com lusitano. "Uma entrevista ruim". Joca encheu o copo de Samir e puxou um da pia para si. "Virou gente famosa?", e bebeu um gole. Samir soltou um pequeno riso involuntário e explicou que era jornalista e acabara de entrevistar um ex-professor. "E ele disse que você era um jornalista de merda?". Samir o fitou desamparado. Falava igual a todos os velhos bêbados que transitavam por ali, talvez por influência deles ou talvez os tenha influenciado, mas não tinha melhor lugar para desabafar qualquer coisa do que ali. "Não, ele é um merda". "Acontece", Joca riu e serviu mais um copo de cerveja para cada um. Os dois bebiam rápido, importando-se mais com o efeito do que com o gosto.

Samir explicou que trabalhava num jornal faz poucos anos e, quando recebeu um e-mail da acessoria de imprensa de uma editora, viu que era para o lançamento do primeiro romance de um ex-professor seu, praticamente um ídolo durante a faculdade. "Jorge Salgado, um dos poucos resquícios de inteligência daquela faculdade. Daí eu formulei rapidinho uma proposta de matéria que foi aceita pela minha editora". Joca saiu no meio da frase de Samir, sem nada dizer, para servir uma mesa. Mas logo voltou. "Acho que comecei a ficar deprimido quando li o livro, um romancezinho de banca de revista cheio de cenas de sexo mal escritas, um monte de fetiches incompletos de um cara que não deve ter comido mais do que três mulheres a vida inteira". Joca riu alto, "Minha mulher lê essas coisas, vou indicar esse Salgado pra ela", parecia mais interessado na conversa. "O pior é que dá pra ver perceber ele tentando evitar todos os clichês possíveis, em cada página, e fazendo merda atrás de merda atrás de merda, só pra evitar clichês. Ele acha que está subvertendo milhares de anos de literatura na porra do livro, mas não tem pé, nem cabeça, nem tesão, nem porra nenhuma". Joca ria mais e pedia pra Samir detalhar as cenas de sexo. "Gente, ouve isso aqui", chamou a atenção dos outros poucos clientes e praticamente obrigou o jornalista e esmiuçar algumas das desventuras sexuais do protagonista do livro, o que ele fez muito brevemente, cheio de relutância. Não tinha nem ânimo para fazer piada do ex-professor. "Eu queria ler livros assim", disse o Joca. "Esse cara merece um prêmio", alguém gritou. E na verdade existia um prêmio anual, na Inglaterra, para as piores descrições de sexo em literatura. Valia seiscentas libras. Samir achava que Jorge Salgado realmente merecia esse prêmio.

O pior foi a conversa. Mal falaram sobre o livro, já que Samir fez somente algumas perguntas básicas para a matéria, mas não queria se aprofundar no assunto. Preferiu perguntar sobre a vida profissional. Jorge Salgado não tinha idéia de quem era Samir, não gostava de falar sobre seus dias como professor - "Salário baixo e muito pó" - e estava totalmente desiludido com o jornalismo. Até fez piada com a cara do entrevistador. Disse que entrou para a faculdade na esperança de ganhar discos e ver filmes de graça, mas hoje em dia ninguém mais precisa disso, está tudo disponível na internet e tudo parece lixo. "Como assim?", Joca bebeu mais um copo. "Eu compro um monte de disco todo mês, minha mulher tá sempre me arrastando pro cinema pra ver aquelas porcarias que ela gosta". Samir fitou Joca. Ele não entenderia. Tinha mais uma porção de anedotas sobre a entrevista para desabafar, mas não queria ter que ficar explicando as coisas.

Samir era a clientela errada e nem fazia ideia disso.

Henrique Amud é roteirista. Natural de Manaus, reside no Rio de Janeiro com visto de turista. Teve um conto publicado na Revista Ficções #19. Atualmente prepara uma coletânea de contos curtos com ilustrações do artista Ricardo Manjaro que talvez veja a luz do dia.