Por Henrique Amud
Aquelas paredes gordurosas nunca ficariam totalmente limpas
se dependesse dos clientes. Apenas o suficiente pra vigilância sanitária não
multar ninguém. A sujeira traz um certo conforto, a certeza de que o bar não
atrairá a clientela errada, os preços não subirão e a conta ainda pode ser
pendurada. Samir preferia os horários de menos movimento, entre duas e quatro
da tarde. Não que aqueles trinta metros quadrados ficassem lotados, mas ele não
suportava os velhos bêbados discutindo em voz alta, tentando chamar atenção,
olhando para os lados à procura de uma cabeça fazendo um gesto afirmativo.
Nesses momentos, Samir conseguia vê-los através de sua visão periférica,
esperando um milésimo de atenção - "Tô errado?" - para trazê-lo para
a conversa, mas seu olhar fixava-se em algo ou alguém e os senhores bêbados
caçavam outra cabeça nas redondezas.
Joca, desgostoso como todo o sempre, abriu a garrafa,
serviu-lhe o copo e voltou a assistir televisão. Quando foi abrir a segunda
garrafa, percebeu Samir tão desgostoso quanto ele, talvez até mais. "Que
foi, macho?", perguntou numa mistura de sotaque cearense com lusitano.
"Uma entrevista ruim". Joca encheu o copo de Samir e puxou um da pia
para si. "Virou gente famosa?", e bebeu um gole. Samir soltou um
pequeno riso involuntário e explicou que era jornalista e acabara de
entrevistar um ex-professor. "E ele disse que você era um jornalista de
merda?". Samir o fitou desamparado. Falava igual a todos os velhos bêbados
que transitavam por ali, talvez por influência deles ou talvez os tenha
influenciado, mas não tinha melhor lugar para desabafar qualquer coisa do que
ali. "Não, ele é um merda". "Acontece", Joca riu e serviu
mais um copo de cerveja para cada um. Os dois bebiam rápido, importando-se mais
com o efeito do que com o gosto.
Samir explicou que trabalhava num jornal faz poucos anos e,
quando recebeu um e-mail da acessoria de imprensa de uma editora, viu que era
para o lançamento do primeiro romance de um ex-professor seu, praticamente um
ídolo durante a faculdade. "Jorge Salgado, um dos poucos resquícios de
inteligência daquela faculdade. Daí eu formulei rapidinho uma proposta de
matéria que foi aceita pela minha editora". Joca saiu no meio da frase de
Samir, sem nada dizer, para servir uma mesa. Mas logo voltou. "Acho que
comecei a ficar deprimido quando li o livro, um romancezinho de banca de
revista cheio de cenas de sexo mal escritas, um monte de fetiches incompletos
de um cara que não deve ter comido mais do que três mulheres a vida
inteira". Joca riu alto, "Minha mulher lê essas coisas, vou indicar
esse Salgado pra ela", parecia mais interessado na conversa. "O pior
é que dá pra ver perceber ele tentando evitar todos os clichês possíveis, em
cada página, e fazendo merda atrás de merda atrás de merda, só pra evitar
clichês. Ele acha que está subvertendo milhares de anos de literatura na porra
do livro, mas não tem pé, nem cabeça, nem tesão, nem porra nenhuma". Joca
ria mais e pedia pra Samir detalhar as cenas de sexo. "Gente, ouve isso
aqui", chamou a atenção dos outros poucos clientes e praticamente obrigou
o jornalista e esmiuçar algumas das desventuras sexuais do protagonista do
livro, o que ele fez muito brevemente, cheio de relutância. Não tinha nem ânimo
para fazer piada do ex-professor. "Eu queria ler livros assim", disse
o Joca. "Esse cara merece um prêmio", alguém gritou. E na verdade
existia um prêmio anual, na Inglaterra, para as piores descrições de sexo em
literatura. Valia seiscentas libras. Samir achava que Jorge Salgado realmente
merecia esse prêmio.
O pior foi a conversa. Mal falaram sobre o livro, já que
Samir fez somente algumas perguntas básicas para a matéria, mas não queria se
aprofundar no assunto. Preferiu perguntar sobre a vida profissional. Jorge
Salgado não tinha idéia de quem era Samir, não gostava de falar sobre seus dias
como professor - "Salário baixo e muito pó" - e estava totalmente
desiludido com o jornalismo. Até fez piada com a cara do entrevistador. Disse
que entrou para a faculdade na esperança de ganhar discos e ver filmes de
graça, mas hoje em dia ninguém mais precisa disso, está tudo disponível na
internet e tudo parece lixo. "Como assim?", Joca bebeu mais um copo.
"Eu compro um monte de disco todo mês, minha mulher tá sempre me
arrastando pro cinema pra ver aquelas porcarias que ela gosta". Samir
fitou Joca. Ele não entenderia. Tinha mais uma porção de anedotas sobre a
entrevista para desabafar, mas não queria ter que ficar explicando as coisas.
Samir era a clientela errada e nem fazia ideia disso.
Henrique Amud é
roteirista. Natural de Manaus, reside no Rio de Janeiro com visto de turista.
Teve um conto publicado na Revista
Ficções #19. Atualmente prepara uma coletânea de contos curtos com
ilustrações do artista Ricardo Manjaro que talvez veja a luz do dia.