quarta-feira, 18 de julho de 2012

Antes de a noite chegar


Por Alessandro Garcia
“A literatura não é outra coisa senão um sonho dirigido.”
(Jorge Luis Borges)

Passadas as dezenove horas e o papel preso à máquina ainda é uma pergunta em branco que insiste em perturbá-lo, a lembrá-lo de sua necessidade de preenchimento.

O escritor faz uso de suas memórias mais recentes, recorre aos livros que estão ao alcance de suas mãos logo ali, na estante, e sabe que percorrer suas páginas é mais que um convite à inspiração – inevitavelmente fará sua alguma trama que lhe entrará à memória, mesmo que travestida de novo argumento, como se vivenciada em nova situação. Para o escritor, as dezenove horas passadas são mais que horas de desespero: entrando as vinte horas, sabe que a inexistência de palavras marcadas nas folhas de papel ofício serão mais do que a certeza de sua ineficiência momentânea, de sua falta parcial do que escrever; será, no seu desespero absurdo, a concretização de sua incompetência, a prova de seu erro em querer aventurar-se pelas letras para dar algum sentido que insiste ser mais do que mera vaidade, que faz questão de justificar como a sua expressão artística. Ao final do dia, não preenchida a página, ao escritor não restará senão a amargura de mais uma noite pronta e mais um dia inutilizado. Se cada dia é a possibilidade para se preencher de maneira fundamental o papel, seu inapelável instrumento de trabalho, o dia perdido à contemplação do tema, à procura da criação da história, à fundamentação de suas memórias é como um tapa seco e indiscutível, o veredito que não precisa ser-lhe informado por outrem – é o próprio escritor quem percebe que findado um dia inteiro a observar o papel preso à Facit, a procurar pequenas ocupações que lhe sirvam como alívio de pensamento: o cigarro que não fuma, o café que não bebe porque está quente demais e o quarto por demais abafado e ainda sem ventilador, terá a resposta que nem tem coragem de perguntar em voz alta a si mesmo por temer a confirmação. Uma página em branco no fim do dia do escritor é o fim do dia do escritor.

Não obstante, o telefonema que não flui como na maioria das vezes, já foi a resposta à incapacidade do escritor em fazer-se ao menos eficiente nas coisas do relacionamento. Nem nisso o é. O monólogo que lhe chega pelo fone, os argumentos imbatíveis que a outra lhe apresenta, o choro que não tem palavras para controlar, as ofensas que lhe são jogadas sem que tenha justificativas para amenizar, empurrariam o escritor no fosso mais profundo de tristeza, não tivesse o escritor pretensão de transformar mesmo as mais doídas experiências de vida em material para seus escritos. Mas nem isso o escritor consegue. Ao fim do telefonema que não tem forças para retornar, ditas as barbaridades que não tem razão para contestar, machucado o seu coração que não tem maneiras de curar, o escritor nem isso consegue transformar em ficção. O medo que lhe toma é de quedar-se na confissão banal e abominável. Para o escritor, cento e cinquenta laudas não preenchidas a uma página que seja de confissão gratuita e adocicada de sentimentos magoados.

Prestes a findar o dia a contemplar paredes brancas, a folhear livros cujas frases já lhe são memória e a acariciar com os dedos dos pés os cachorros que insistem em rodeá-lo, o ofício do escritor é nulo como a parede que o pedreiro não levantou. A página em branco a fitar o escritor, pedindo-lhe providências é um som de alarme tão exasperante que o escritor nem tem coragem de abandonar o local do incêndio: sente pena de si mesmo quando a água de emergência molha seu terno amarfanhado, embaça seus óculos grossos demais e não lhe é fria o suficiente para fazê-lo mover-se um triz sequer da cadeira em que continua prostrado para continuar fitando (ensandecido seria, se não fosse triste, pela constatação) o papel que, em empáfia, lhe inquire sobre o porquê de seus dedos tão crispados, seus argumentos tão pobres e sua mente tão embotada.

A página em branco à frente do escritor é o seu desafio de todos os dias. O som do tipo a preenchê-la com palavras que se vão concatenando é a realização de sua vida. A história que se vai revelando através da tinta invisível que se mostra conforme as teclas são pressionadas pelo escritor é o pagamento pelo dia inteiro de sofrimento mental, não pelo branco, mas pela confusão que se lhe forma em mente e o impede de discernir o que é necessário, o que é propriedade de outrem e o que é inadmissível que lhe ronde os pensamentos.

As teclas compondo sinfonia aos seus escritos é mais do que toda a música que o escritor desejou ouvir em um só dia. Passado todo um dia em que a mediocridade do escritor foi tamanha, que se tornou um diletante do ofício à mercê de sentimentos românticos de inspiração e seus métodos foram ineficazes para conseguir fazer de um dia, um dia de trabalho, ainda assim ter certeza de que a história que começa a compor é uma história que, antes de a noite chegar, terá valido todo o dia de inexatidão, já lhe é a recompensa mais do que merecida, o alívio que o faz sentir-se merecedor realmente deste título tão inebriante quanto vaidoso, mas tão simples quanto necessário. O escritor se reconhece em seu ofício e sabe que a noite pode vir, definitivamente.

Alessandro Garcia é autor de A sordidez das pequenas coisas (Não Editora, 2010), de onde foi retirado este conto. O livro foi finalista do Prêmio Jabuti e um dos vencedores do Prêmio Fundação Biblioteca Nacional. Atualmente escreve o romance A Zona da Invisibilidade.