Por Alessandro
Garcia
“A literatura
não é outra coisa senão um sonho dirigido.”
(Jorge Luis
Borges)
Passadas as
dezenove horas e o papel preso à máquina ainda é uma pergunta em branco que
insiste em perturbá-lo, a lembrá-lo de sua necessidade de preenchimento.
O escritor faz
uso de suas memórias mais recentes, recorre aos livros que estão ao alcance de
suas mãos logo ali, na estante, e sabe que percorrer suas páginas é mais que um
convite à inspiração – inevitavelmente fará sua alguma trama que lhe entrará à
memória, mesmo que travestida de novo argumento, como se vivenciada em nova
situação. Para o escritor, as dezenove horas passadas são mais que horas de
desespero: entrando as vinte horas, sabe que a inexistência de palavras marcadas
nas folhas de papel ofício serão mais do que a certeza de sua ineficiência
momentânea, de sua falta parcial do que escrever; será, no seu desespero
absurdo, a concretização de sua incompetência, a prova de seu erro em querer
aventurar-se pelas letras para dar algum sentido que insiste ser mais do que
mera vaidade, que faz questão de justificar como a sua expressão artística. Ao
final do dia, não preenchida a página, ao escritor não restará senão a amargura
de mais uma noite pronta e mais um dia inutilizado. Se cada dia é a
possibilidade para se preencher de maneira fundamental o papel, seu inapelável
instrumento de trabalho, o dia perdido à contemplação do tema, à procura da
criação da história, à fundamentação de suas memórias é como um tapa seco e indiscutível,
o veredito que não precisa ser-lhe informado por outrem – é o próprio escritor quem
percebe que findado um dia inteiro a observar o papel preso à Facit, a procurar
pequenas ocupações que lhe sirvam como alívio de pensamento: o cigarro que não
fuma, o café que não bebe porque está quente demais e o quarto por demais
abafado e ainda sem ventilador, terá a resposta que nem tem coragem de
perguntar em voz alta a si mesmo por temer a confirmação. Uma página em branco
no fim do dia do escritor é o fim do dia do escritor.
Não obstante, o
telefonema que não flui como na maioria das vezes, já foi a resposta à
incapacidade do escritor em fazer-se ao menos eficiente nas coisas do
relacionamento. Nem nisso o é. O monólogo que lhe chega pelo fone, os
argumentos imbatíveis que a outra lhe apresenta, o choro que não tem palavras
para controlar, as ofensas que lhe são jogadas sem que tenha justificativas
para amenizar, empurrariam o escritor no fosso mais profundo de tristeza, não
tivesse o escritor pretensão de transformar mesmo as mais doídas experiências
de vida em material para seus escritos. Mas nem isso o escritor consegue. Ao
fim do telefonema que não tem forças para retornar, ditas as barbaridades que
não tem razão para contestar, machucado o seu coração que não tem maneiras de
curar, o escritor nem isso consegue transformar em ficção. O medo que lhe toma
é de quedar-se na confissão banal e abominável. Para o escritor, cento e
cinquenta laudas não preenchidas a uma página que seja de confissão gratuita e
adocicada de sentimentos magoados.
Prestes a findar
o dia a contemplar paredes brancas, a folhear livros cujas frases já lhe são
memória e a acariciar com os dedos dos pés os cachorros que insistem em
rodeá-lo, o ofício do escritor é nulo como a parede que o pedreiro não
levantou. A página em branco a fitar o escritor, pedindo-lhe providências é um
som de alarme tão exasperante que o escritor nem tem coragem de abandonar o
local do incêndio: sente pena de si mesmo quando a água de emergência molha seu
terno amarfanhado, embaça seus óculos grossos demais e não lhe é fria o
suficiente para fazê-lo mover-se um triz sequer da cadeira em que continua
prostrado para continuar fitando (ensandecido seria, se não fosse triste, pela
constatação) o papel que, em empáfia, lhe inquire sobre o porquê de seus dedos
tão crispados, seus argumentos tão pobres e sua mente tão embotada.
A página em
branco à frente do escritor é o seu desafio de todos os dias. O som do tipo a
preenchê-la com palavras que se vão concatenando é a realização de sua vida. A
história que se vai revelando através da tinta invisível que se mostra conforme
as teclas são pressionadas pelo escritor é o pagamento pelo dia inteiro de
sofrimento mental, não pelo branco, mas pela confusão que se lhe forma em mente
e o impede de discernir o que é necessário, o que é propriedade de outrem e o
que é inadmissível que lhe ronde os pensamentos.
As teclas
compondo sinfonia aos seus escritos é mais do que toda a música que o escritor
desejou ouvir em um só dia. Passado todo um dia em que a mediocridade do
escritor foi tamanha, que se tornou um diletante do ofício à mercê de
sentimentos românticos de inspiração e seus métodos foram ineficazes para
conseguir fazer de um dia, um dia de trabalho, ainda assim ter certeza de que a
história que começa a compor é uma história que, antes de a noite chegar, terá
valido todo o dia de inexatidão, já lhe é a recompensa mais do que merecida, o
alívio que o faz sentir-se merecedor realmente deste título tão inebriante
quanto vaidoso, mas tão simples quanto necessário. O escritor se reconhece em
seu ofício e sabe que a noite pode vir, definitivamente.
Alessandro Garcia é autor de A sordidez das pequenas coisas (Não Editora, 2010), de onde foi retirado este conto. O livro foi finalista do Prêmio Jabuti e um dos vencedores do Prêmio Fundação Biblioteca Nacional. Atualmente escreve o romance A Zona da Invisibilidade.