Esta é uma crônica de relatos avulsos dos dias na
10ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty em 2012
Por
Rodrigo Novaes de Almeida
#1 Escrever
é como cuidar de um bonsai, pensou Júlio, dentro do livro do chileno
Alejandro Zambra. Mas por volta das dez e meia da manhã daquela quarta-feira,
comendo pão-de-queijo na parada de ônibus da estrada Rio-Santos, eu ainda não
sabia disso. Só leria o primeiro romance dele mais tarde.
#2 Há muitos anos, cerca de vinte anos
atrás, tive um bonsai “genérico”. Ganhei do meu pai. Talvez fosse um pinheiro.
Morreu depois de alguns meses. Sempre sonhei em ter uma laranjeira.
[Dois pães-de-queijo e uma Coca-Cola;
Christiane pediu um café expresso e comeu um salgado]
#3 Céu azul, sol. Faz calor no inverno de Paraty. O
centro histórico ainda não está cheio de gente. Duas horas da tarde, à mesa do
bar Miracolo, na rua, diante da Praça da Matriz, assistimos à chegada de
escritores, jornalistas e turistas literários – uma modalidade crescente nos
últimos anos no país, com a proliferação de festas como essa (dados oficiais
posteriores deram conta de 25 mil pessoas em Paraty durante a Flip deste ano).
[Bolinhos de bacalhau, suco de abacaxi com
hortelã para Christiane e uma cerveja para mim]
#4 Por volta das três da tarde,
Jennifer Egan chega a Paraty com o marido e seus dois filhos.
#5 Quatro horas da tarde, o plano
inicial de pular o almoço, após percorrer as ruas do centro histórico e fazer o
reconhecimento – inclusive fotográfico – da estrutura da Flip, não
funcionou. Almoçamos no Dona Ondina.
[Risoto de camarão com palmitos. Estes, em
rodelas, de tão grandes que eram, achei que fossem batatas; as batatas: na
estrada, voltando da Flip para casa, leria um ensaio de M.F.K. Fisher sobre
elas na revista Serrote]
#6 Comprei um chapéu cinza para a
minha coleção; a coleção: um chapéu panamá comprado em Tenerife, um chapéu
azul-marinho “vulgar” comprado em Alicante, um chapéu coco preto, herdado, que
usei uma vez para tirar uma foto como “personagem do filme Laranja Mecânica”, e
um chapéu de safari, apesar de nunca ter ido a um. A loja se chama Panos e
cheiros e fica na Rua do Comércio.
#7 Preciso usar mais os meus chapéus,
penso (ou comento com a Christiane. Não anotei isto no manuscrito desse
relato).
#8 Entre o café da manhã na pousada e
o almoço (falaremos logo dele, nos colchetes), começa a Flip de fato. Estamos
na quinta-feira, mesa sobre Jorge Amado, com Walcyr Carrasco e João Ubaldo
Ribeiro. Ubaldo diverte todo mundo nessa primeira manhã azul em Paraty.
[Peixe grelhado, arroz branco e salada, no
Aconchego, antes das próximas duas mesas]
#9 À tarde, Juan Gabriel Vásquez diz
que o romance é uma metáfora, ou algo assim, e eu decido escrever agora que esse
relato é também uma metáfora. Percebo então que ainda não falei sobre Carlos
Drummond de Andrade, o grande homenageado da festa. A metáfora me levou ao
Drummond.
#10 No colégio de São Bento decorei um
poema do Drummond para declamar em sala de aula. Era um trabalho valendo nota.
Minha mãe me ajudou na véspera. Eu tinha uns nove, dez anos. E assim fomos
apresentados, de Mãos dadas: Não serei o
poeta de um mundo caduco. / Também não cantarei o mundo futuro. / Estou preso à
vida e olho meus companheiros... Não larguei mais os livros. Passava muitos
recreios na biblioteca do colégio, e sonhava com “a grande biblioteca” do
mosteiro que, se não me engano, visitamos uma única vez antes de fazermos a
primeira comunhão. Aquela visita é uma das minhas mais caras memórias da
infância. Ela despertou a minha imaginação para as histórias. E Drummond estava
também lá, no manancial da minha escritura.
#11 Agora eu vou falar de vinho, antes
de entrarmos a noite trabalhando nos textos sobre as mesas. O vinho e uma
inconfidência. Comprei um vinho português pelo nome. Não, comprar pelo nome não
é a inconfidência. Neste caso, não é o nome que atesta a qualidade do vinho. O
nome, aqui, atesta a qualidade do próprio nome. Porque é o meu nome. O nome do
vinho: Dom Rodrigo. Iria bebê-lo mais tarde, insone, depois de escrever o meu
texto sobre a mesa Ficção e História
(com Javier Cercas e Juan Gabriel Vásquez). Agora sim, a inconfidência: li e
abandonei a leitura de Soldados de
Salamina, “porque não era Hemingway escrevendo sobre guerras”.
#12 Problemas com a conexão de
internet da pousada e do 3G. Paredes de pedras. Quase o mesmo tempo para postar
um texto, de escrevê-lo. Garrafa Dom Rodrigo aberta, taça cheia, Christiane
dormindo, peguei Bonsai para ler.
Parei quase no fim do livro e da garrafa, e dormi. Terminaria o livro no Rio.
[Moqueca de peixe, arroz branco, pirão –
restaurante Arpoador, na Rua da Matriz]
#13 Dois dias de mesas e lançamentos e
encontros e textos e muitas fotos. Duas notas adicionais que decido colocar
aqui, mesmo perturbando a linearidade do relato: (1) Sábado à noite encontrei
Ian McEwan na Praça da Matriz. Tomei coragem e tirei uma foto com ele. (2)
Domingo, antes de voltarmos para casa, atravessei a rua e entrei numa lojinha
de retalhos que namorei, da sacada da pousada, durante esses dias. Não comprei
uma colcha, mas uma almofada de retalhos.
[Almoço, sábado, na Creperia Farandole]
#14 À mesa. Esperamos os crepes. O
nosso vocabulário cotidiano é tão pobre, penso, observando o telhado de uma
casa do outro lado da rua. Bate sol nas telhas e posso ver uns vinte
centímetros de céu azul salpicado de nuvens. Aquela estância eu separo do
mundo: fragmento de telhado, céu, nuvens – através da enorme porta abobadada e
muito antiga do restaurante. Aquela estância acolhe meus pensamentos – e um
sentimento que se faz centelha.
#15 Centelha, sentimento e pensamentos
que não posso descrever em palavras. Vocabulário pobre, vocabulário pobre. Nós,
escritores, quando vencemos a língua é por teimosia.
[Um pedaço de pizza, domingo, antes de
entrar no ônibus e voltar para casa]