domingo, 15 de julho de 2012

Uma crônica para a Flip

Esta é uma crônica de relatos avulsos dos dias na 10ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty em 2012


Por Rodrigo Novaes de Almeida

#1 Escrever é como cuidar de um bonsai, pensou Júlio, dentro do livro do chileno Alejandro Zambra. Mas por volta das dez e meia da manhã daquela quarta-feira, comendo pão-de-queijo na parada de ônibus da estrada Rio-Santos, eu ainda não sabia disso. Só leria o primeiro romance dele mais tarde.

#2 Há muitos anos, cerca de vinte anos atrás, tive um bonsai “genérico”. Ganhei do meu pai. Talvez fosse um pinheiro. Morreu depois de alguns meses. Sempre sonhei em ter uma laranjeira.

[Dois pães-de-queijo e uma Coca-Cola; Christiane pediu um café expresso e comeu um salgado]

#3 Céu azul, sol. Faz calor no inverno de Paraty. O centro histórico ainda não está cheio de gente. Duas horas da tarde, à mesa do bar Miracolo, na rua, diante da Praça da Matriz, assistimos à chegada de escritores, jornalistas e turistas literários – uma modalidade crescente nos últimos anos no país, com a proliferação de festas como essa (dados oficiais posteriores deram conta de 25 mil pessoas em Paraty durante a Flip deste ano).

[Bolinhos de bacalhau, suco de abacaxi com hortelã para Christiane e uma cerveja para mim]

#4 Por volta das três da tarde, Jennifer Egan chega a Paraty com o marido e seus dois filhos.

#5 Quatro horas da tarde, o plano inicial de pular o almoço, após percorrer as ruas do centro histórico e fazer o reconhecimento – inclusive fotográfico – da estrutura da Flip, não funcionou. Almoçamos no Dona Ondina.

[Risoto de camarão com palmitos. Estes, em rodelas, de tão grandes que eram, achei que fossem batatas; as batatas: na estrada, voltando da Flip para casa, leria um ensaio de M.F.K. Fisher sobre elas na revista Serrote]

#6 Comprei um chapéu cinza para a minha coleção; a coleção: um chapéu panamá comprado em Tenerife, um chapéu azul-marinho “vulgar” comprado em Alicante, um chapéu coco preto, herdado, que usei uma vez para tirar uma foto como “personagem do filme Laranja Mecânica”, e um chapéu de safari, apesar de nunca ter ido a um. A loja se chama Panos e cheiros e fica na Rua do Comércio.

#7 Preciso usar mais os meus chapéus, penso (ou comento com a Christiane. Não anotei isto no manuscrito desse relato).

#8 Entre o café da manhã na pousada e o almoço (falaremos logo dele, nos colchetes), começa a Flip de fato. Estamos na quinta-feira, mesa sobre Jorge Amado, com Walcyr Carrasco e João Ubaldo Ribeiro. Ubaldo diverte todo mundo nessa primeira manhã azul em Paraty.

[Peixe grelhado, arroz branco e salada, no Aconchego, antes das próximas duas mesas]

#9 À tarde, Juan Gabriel Vásquez diz que o romance é uma metáfora, ou algo assim, e eu decido escrever agora que esse relato é também uma metáfora. Percebo então que ainda não falei sobre Carlos Drummond de Andrade, o grande homenageado da festa. A metáfora me levou ao Drummond.

#10 No colégio de São Bento decorei um poema do Drummond para declamar em sala de aula. Era um trabalho valendo nota. Minha mãe me ajudou na véspera. Eu tinha uns nove, dez anos. E assim fomos apresentados, de Mãos dadas: Não serei o poeta de um mundo caduco. / Também não cantarei o mundo futuro. / Estou preso à vida e olho meus companheiros... Não larguei mais os livros. Passava muitos recreios na biblioteca do colégio, e sonhava com “a grande biblioteca” do mosteiro que, se não me engano, visitamos uma única vez antes de fazermos a primeira comunhão. Aquela visita é uma das minhas mais caras memórias da infância. Ela despertou a minha imaginação para as histórias. E Drummond estava também lá, no manancial da minha escritura.

#11 Agora eu vou falar de vinho, antes de entrarmos a noite trabalhando nos textos sobre as mesas. O vinho e uma inconfidência. Comprei um vinho português pelo nome. Não, comprar pelo nome não é a inconfidência. Neste caso, não é o nome que atesta a qualidade do vinho. O nome, aqui, atesta a qualidade do próprio nome. Porque é o meu nome. O nome do vinho: Dom Rodrigo. Iria bebê-lo mais tarde, insone, depois de escrever o meu texto sobre a mesa Ficção e História (com Javier Cercas e Juan Gabriel Vásquez). Agora sim, a inconfidência: li e abandonei a leitura de Soldados de Salamina, “porque não era Hemingway escrevendo sobre guerras”.

#12 Problemas com a conexão de internet da pousada e do 3G. Paredes de pedras. Quase o mesmo tempo para postar um texto, de escrevê-lo. Garrafa Dom Rodrigo aberta, taça cheia, Christiane dormindo, peguei Bonsai para ler. Parei quase no fim do livro e da garrafa, e dormi. Terminaria o livro no Rio.

[Moqueca de peixe, arroz branco, pirão – restaurante Arpoador, na Rua da Matriz]

#13 Dois dias de mesas e lançamentos e encontros e textos e muitas fotos. Duas notas adicionais que decido colocar aqui, mesmo perturbando a linearidade do relato: (1) Sábado à noite encontrei Ian McEwan na Praça da Matriz. Tomei coragem e tirei uma foto com ele. (2) Domingo, antes de voltarmos para casa, atravessei a rua e entrei numa lojinha de retalhos que namorei, da sacada da pousada, durante esses dias. Não comprei uma colcha, mas uma almofada de retalhos.

[Almoço, sábado, na Creperia Farandole]

#14 À mesa. Esperamos os crepes. O nosso vocabulário cotidiano é tão pobre, penso, observando o telhado de uma casa do outro lado da rua. Bate sol nas telhas e posso ver uns vinte centímetros de céu azul salpicado de nuvens. Aquela estância eu separo do mundo: fragmento de telhado, céu, nuvens – através da enorme porta abobadada e muito antiga do restaurante. Aquela estância acolhe meus pensamentos – e um sentimento que se faz centelha.

#15 Centelha, sentimento e pensamentos que não posso descrever em palavras. Vocabulário pobre, vocabulário pobre. Nós, escritores, quando vencemos a língua é por teimosia.

[Um pedaço de pizza, domingo, antes de entrar no ônibus e voltar para casa]