quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A assinatura anônima


Por Daniel Russell Ribas 

Todo escritor, secretamente ou não, se encontra dividido entre o reconhecimento de seu trabalho e a necessidade de pagar as contas. Mesmo nomes consagrados, como Fernando Sabino e João Ubaldo Ribeiro, assumiram que já escreveram obras cuja intenção principal era ser um sucesso de vendas. Emissoras de televisão e agências de publicidade empregam, além de dramaturgos e roteiristas, os serviços de autores de literatura para colaborar em seus produtos.

Existe outro tipo de escritor profissional. Trata-se de um profissional produtivo, cuja função mescla a atividade jornalística com o dom do ficcionista. Ou seja, possui o cuidado editorial do preparador de textos com o domínio da técnica narrativa de uma autor literário. Ele transita entre assuntos variados e personagens diversos. Não apresenta dificuldade alguma em encontrar suas obras espalhadas para aqueles atentos. No entanto, o leitor não saberá quem é o real dono das palavras pela capa ou a ficha catalográfica. Pois seus textos não lhe pertencem. Estas são, em resumo, as atribulações do ghostwriter.

Uma figura cuja definição misteriosa está implicada em seu título, o ghost, como é apelidado, é bastante requisitado e apreciado. Sua função varia de acordo com as particularidades do serviço. Normalmente utilizado em biografias, ele pode ser chamado para escrever de orelhas de livro e cartas ao editor, a discursos e releases. Seu trabalho pode ser pontual ou mais extenso, abrangendo desde revisão a entrevistas e elaboração do texto.

Biografias costumam ser um terreno usual para a contratação de ghostwriters, pois os personagens ou biografados do livro, em muitas ocasiões, não possuem intimidade com a escrita. A editora da linha não-ficção da Nova Fronteira, Cristiane Costa, exemplifica em “livros de celebridades”. Mas há também outros casos. “Especialistas como médicos e preparadores físicos também precisam de alguém para ajudá-los a ordenar suas ideias.”, declara. Segundo Alvanísio Damasceno, professor de cursos nas áreas de preparação de texto, o ghost é, em primeiro lugar, um repórter. A capacidade de produção de uma síntese própria dos fatos, além da curiosidade inerente são as justificativas para a afirmação. Além disso, Damasceno aponta outra característica. “É preciso também ter acuidade para identificar a possível voz da pessoa ou instituição que irá assinar a obra.” Costa, complementa: “O maior erro do ghost é impor sua filosofia, seu estilo, seus valores.” Para ela, o que é necessário para exercer este ofício é: “Basicamente apurar bem e escrever bem.”

Embora não seja uma ghostwriter, a escritora profissional Carla Mühlhaus possui uma ética profissional similar. Co-autora das biografias Marília Carneiro no Camarim das Oito (com Marília Carneiro) e A bela Menina do Cachorrinho (com Ana Karina de Montreuil), a ex-jornalista se define como um escritora profissional, conforme reitera em seu blog, Casa do Moinho (http://casadomoinho.blogspot.com): “O que quer dizer que escrevo por encomenda, colocando no papel o que o meu contratante não conseguiria fazer por conta própria, ao menos não num formato editorial.” Ao contrário de um ghost, faz questão de ser creditada pelo serviço prestado.

Para Mühlhaus, em uma entrevista cedida para uma monografia sobre ghostwriting, existem dois tipos de contratantes do profissional para escrever o texto. Há aqueles que alegam pouco tempo para se dedicar à escrita e acreditam que escrever é apenas uma questão de ser alfabetizado. “Esses encomendam o serviço de criação de texto e depois mexem em tudo, reformulam frases, mudam parágrafos inteiros e levam os pobres dos escritores praticamente à loucura.” Já o outro tipo seriam mais cooperativos e inteligentes, por delegar tarefas. “Quando não gostam de alguma coisa indicam a insatisfação sem metralhar o texto, o que faz com que todo o processo criativo (e coletivo) flua muito bem.”

A forma como o ghost se relaciona com o cliente é determinante no andamento do livro. Cristiane Costa acredita ser fundamental. “O biografado normalmente fica aliviado de não ter que escrever.” A escolha do ghost reflete a preocupação do cliente pelo controle sobre o resultado final. “Em geral, é o próprio biografado quem escolhe, ou porque já conhece alguém ou após uma série de entrevistas”. Damasceno cita que tipo de escritor é chamado para este trabalho: “Em geral são jornalistas conhecidos que são convidados por personalidades ou por editoras para escreverem os livros que podem ser do interesse dos leitores ou apenas das personalidades que os encomendam”.

Damasceno elabora um outro aspecto da relação do escritor anônimo com o cliente:

“O ghost, muitas vezes, se vê no dilema de ter de satisfazer dois clientes com interesses opostos: o leitor e o personagem. Sobretudo quando é o personagem que paga pelo trabalho do ghost. É que o leitor que ter acesso ao máximo de informações, enquanto o personagem tende a querer selecioná-las. Refiro-me, nesse caso, a trabalho biográficos.”

Outra fator é, por não assinar o livro, o ghost recebe apenas pelo trabalho realizado. Mühlhaus revela a diferença de compensação entre seu trabalho e o do escritor que fica desconhecido. “Uma sou eu, “escritora de aluguel” que recebe crédito e às vezes assina o livro com o autor em legítima co-autoria, com direito, inclusive, a receber metade dos direitos autorais. Outro profissional é o ghostwriter, que na verdade recebe para ficar quieto e jamais dizer que quem escreveu aquele livro tão bem falado foi ele.” Já Damasceno enxerga outras possibilidades. “O ghostwriter pode muito bem fazer o trabalho como investimento, ou seja, começar a ganhar depois que o livro começa a vender.”, relata.

Segundo Costa, ao mesmo tempo em que há demanda, não existe uma formação específica para esse profissional. Por isso, uma das razões de tantos terem experiência com jornalismo. E aí surge o lado mais perigoso da falta de reconhecimento. Afinal, se ele fez um bom trabalho, ninguém deve saber. Como Mühlhaus relacionou quando inquirida sobre como as dificuldades em fazer carreira num trabalho que não ser reconhecido: “O que nos leva à questão do ovo e da galinha: como provar experiência, se ele não pode mostrar nada que escreveu?” No caso, por ser incapacitado de montar um currículo de trabalhos nesta área, ele apresentaria sua qualificação como autor. Para Costa, alguns elementos determinam se o ghostwriter foi bem sucedido em sua empreitada. “Se a relação com o biografado se manteve boa, se entregou tudo no prazo, se seguiu o projeto original do livro pedido pelo editor, se o texto ficou bem escrito e bem estruturado e se ele arrancou boas histórias do biografado.”, enumera.

Os três creem que o leitor não percebe o trabalho do ghostwriter. Somente os envolvidos ou pessoas da área editorial notariam. “Acho que o público é indiferente ao trabalho do ghost. O público costuma se interessar pelo tema ou pela celebridade que assina o livro que não escreveu.”, comenta Damasceno. Por sua vez, Costa acha que o leitor não entende bem. “Até porque existem vários tipos. Os que nem são tão ghosts assim e assinam na capa, como o Claudio Tognololi no caso do livro do Lobão. Outros, nas páginas internas. Outros, só nos créditos.”

Já Mühlhaus acha que a presença do escritor é importante para valorizar a obra. No caso, ao referir ao autor creditado pelo trabalho, “...contratar os serviços desse profissional é tornar mais viável uma obra que, se fosse feita artesanalmente, talvez não tivesse chance de ser comercializada”. Em outras palavras, o escritor de carne e osso seria que sairia da fronteira entre o reconhecimento e a carreira. O crédito sendo o passaporte.

Artigo publicado originalmentenarevista eletrônica Rapadura, ed. 3,setembro/outubro de 2011.

Daniel Russell Ribas nasceu em 1983. Criado no Rio de Janeiro e apaixonado por Copacabana. Formou-se em Jornalismo na PUC-Rio. Já escreveu roteiros e contos. Trabalha na Editora Oito e Meio e organiza uma antologia erótica para a editora Vermelho Marinho. É Fluminense.