sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Resenha de 'Por enquanto agora', jornal Estado de Minas

Sábado, 19 de janeiro, jornal Estado de Minas, resenha do livro 'Por enquanto agora', assinada pela professora de literatura da UFMG ,Ruth Silviano Brandão.

Livro de memórias, escrita de si, autobiografia, autoficção, não importa ─ o livro de Maria Christina Monteiro de Castro é travessia do vivido, entre fatos e ficções, que nasceram em Belo Horizonte, ou Sabará, e se estendem para o Rio de Janeiro, para Brasília, até romper com as fronteiras do Brasil, em outros lugares, outros países. Por enquanto agora não se reduz a mero relato de infância, juventude e maioridade, individual ou subjetiva, mas se tece com fios que unem espaço e tempo de uma família, de uma época do Brasil, numa tapeçaria de cores fortes, cuja costura às vezes exibe os furos da memória, os fragmentos, as ficções da verdade, a verdade das ficções. Uma vida escrita.

O leitor entra nas casas de portas abertas onde viveu essa família de classe média alta, metáfora e metonímia de um Brasil que vai sofrer pouco a pouco a desmontagem de seu romance familiar, a ilusão de sua completude e coesão, principalmente aquela vivida nos anos da ditadura quando a violência invadiu o interior das famílias e seus membros outrora idealizados, vivendo sob o fascínio do pai brilhante, político de sucesso e a mãe ancorada numa fé inabalável que ela sustenta até o fim.

Ficção e realidade se entremeiam como a vida que as constrói com acontecimentos , sonhos e decepções. Não importa tanto separar uma coisa da outra, impossível tarefa. Pode-se adivinhar quem é quem em algumas passagens do livro, que, entretanto, é um romance à clef, um de seus atrativos. Não há uma chave só, já que os personagens se condensam, carregando características que pertencem a outros membros da família. São, antes figuras, tipos que marcaram uma época em que a consciência política se juntava à religiosa, à artística, que os tabus morais começaram a permitir a homossexualidade, a divergência e a participação política dos jovens. Quem é quem?

O início de Por enquanto agora é o cenário da infância da narradora, menina inquieta que questiona tudo, aflige-se, sem nunca se alienar na zona de conforto de uma vida aparentemente segura e estável. Ela, Celina, as três irmãs, o pai, a mãe compõem uma família que alimenta as discussões políticas, literárias (sobretudo), rodeando-se de livros e de arte, acolhendo sempre amigos e parentes de seu mundo especial, dessas Minas Gerais, do Rio de Janeiro e de Brasília. A primeira grande mudança/travessia é o Rio, para onde é convocado o pai político, para morarem num Leblon que parece longe da imagem do bairro sofisticado de hoje.

Em sua primeira página, ela já se apresenta: "Convidada para a vida, a menina se descobriu inundada de afetos ─ era tanta fala, tanta gente, tanto medo e tanta raiva, tantos sons e cheiros, tanto reboliço ─como uma vertigem" e assim ela será pela vida afora, com uma energia poderosa que a levará à escrita, sua saída, sua opção de vida, confessada claramente.

Roland Barthes inventa o conceito de biografema ─ traços, minúcias, objetos, encantos, pormenores ─ que apontam para a vida de um escritor ou de quem quer que seja, seu traço, seu estilo, sua marca, eu diria. Ouso afirmar de Christina/Celina que seu biografema é "seu caderno pautado, de capa mole, de sessenta folhas"(p13). E, acrescento a ele um vaticínio, numa exclamação, numa designação de dedo em riste: "ô menininha complicada". Sim, pois complicados são os escritores cuja vida não cabe na vida e extrapola para a escrita. Leitora ruminante, diria Machado de Assis, aquela que rumina, pensa e repensa, grübler, disse Walter Benjamin dos melancólicos, os nunca consolados de uma perda, de uma nunca encontrada explicação para a vida. Disso é feita a literatura, não aquela do puro entretenimento, mas a que inquieta, aflige, desacomoda.

A escrita de Maria Christina, entretanto, não é só feita de perdas, ficaram resquícios, ficou uma imagem de desadaptação, como ela mesma confessa: não se sentia uma filha acomodada, mulher casada típica, nem uma mãe comum, normal, o que incomodava um pouco seus filhos. Ficou a maravilha diante do mundo, a curiosidade, o humor (às vezes dolorido, mas, humor), a ironia, a insatisfação diante das respostas óbvias, do senso comum. Ficou alguma coisa do desejo de absoluto da mãe, da sofisticação intelectual do pai. Dos livros, mil livros de sua biblioteca viajante, quase infinita, borgeana. E as línguas e seu amor por elas: além do português, o francês, o inglês. Sim, o escritor é, antes de tudo, um leitor: de livros, das pessoas, do mundo. Olhos abertos, como os da menina Celina e seus cadernos de anotações, seus diários que acabaram por construir este livro.

Aos poucos, os fios se desfazem, a garantia de supostas certezas sofre os impactos de uma história violenta que foi a do Brasil dos anos de repressão. O mundo fica embaçado e o olhar sobre as coisas muda e ganha outro viés. Reverberações no tempo e no espaço transformam a leitura do mundo, agora sem a nitidez previsível.

Apesar da escrita modulada pelo humor e a ironia que apontam para uma sensibilidade transbordante e rica, em nuances contraditórias, o livro se revela testemunho, autoficção memórias fraturadas. Por enquanto agora não é um romance róseo, marcado pelas ilusões do início do séc. XX. Pode-se falar de um romance de formação, num país que se destroça, destroçando seus ideais e suas ilusões.

Nesse sentido Maria Christina dá testemunho de uma época em que conviveu, além dos limites da família, com políticos do tempo em que o pai foi chefe da Casa Civil do Presidente Café Filho. As oportunidades que teve de conhecer ambientes privilegiados, entretanto, nunca tiraram seu senso crítico e a forma familiar e mineira que a sua família nunca abandonou: "Nunca se ouviu em nossa família, em qualquer situação ou dirigido a qualquer pessoa o clássico Você sabe com quem está falando? Nada neste livro é morno e ligeiro, a escrita é feita de paixão, numa linguagem, entretanto, cuidada, ágil em suas descrições, forte diante das situações-limite. Desde antes do início do livro, a escrita estava presente, quando "a emoção transbordava, toda vez que perdia o ar porque não entendia, tinha medo ou sentia mais do que aguentava". No final, a permanência do desejo de escrita: "vou pegar meus cadernos e escrever. Abrir-me para o que não vivo e desejo, o que pode estar à frente vejo como possível ainda". E o tempo indefinido, descontínuo, inacabado com seus furos, por enquanto, agora. Enquanto. O tempo não acabou.