segunda-feira, 25 de março de 2013

'Semiótica do Espetáculo: um Método para a História' – Entrevista com Claudia Beltrão da Rosa

1. Como chegaram a este tema abordado em Semiótica do espetáculo: um método para a História?

            Esta coletânea tem como objetivo principal apresentar e desenvolver algumas possibilidades metodológicas para a análise de espetáculos músico-teatrais (ballet e ópera) e de filmes, explorando algumas das conexões entre a antiguidade clássica e a nossa própria sociedade. Temas da história e da mitologia clássicas vêm servindo como inspiração para autores, compositores, diretores em suas obras há séculos; tais obras são sucessos de público e de vendas, são vistos, ouvidos, lidos, funcionam muito bem em termos de entretenimento e formam um grande filão da chamada indústria cultural. Nos espetáculos músico-teatrais, a presença de temas da antiguidade quase se confunde com sua própria história, e no cinema ocorre o mesmo; e a presença de temas da antiguidade ou baseados na antiguidade atualmente no cinema e nos espetáculos é notória; esses espetáculos constroem um público consumidor da antiguidade, mas, principalmente, uma nova antiguidade, ressignificada em cada momento.
Pensando apenas nas últimas décadas, denota-se uma presença muito intensa desses temas em nosso mundo, e acreditamos que historiadores e outros estudiosos podem e devem se ocupar da análise de como diferentes sentidos são produzidos e encenados nessas obras, como os seres humanos recebem essas informações visuais, auditivas, narrativas etc.; como os temas são recebidos e modificados em cada momento, dentre outras questões possíveis.
Todos os autores da coletânea são historiadores antiquistas e, unificando os estudos apresentados está o método utilizado, a análise semiótica de espetáculos, que trabalha especificamente os aspectos narrativos dos espetáculos. A semiótica do espetáculo é ainda incipiente no Brasil, e a ver­tente de semiótica narrativa utilizada foi escolhida por sua ótima aplicação aos espetáculos seleciona­dos e sua adequação aos objetivos perseguidos, dada a complexidade dos espetáculos músico-teatrais e do cinema. Isso porque, à exceção de peças e filmes experimentais ou deliberadamente não narrativos, os espetáculos músico-teatrais narram uma história nos palcos ou nas telas e seguem, querendo ou não, tradições artísticas e estéticas há muito estabelecidas. Esta perspectiva teórica é útil quando as conexões entre as obras culturais que envolvem diferentes perío­dos de tempo são examinadas e interpretadas. Consequentemente, a abordagem crítica de espetáculos e filmes que parte da pesquisa acadêmica tem de atentar para o fato de que aquilo que moderna­mente chamamos de “intertextualidade” se torna cada vez mais fascinante de se analisar.
Ao mesmo tempo, é preciso perceber que toda compreensão é uma construção criativa, pois uma obra ou um tema passam de um contexto cultural a outros, e novos sentidos vão sendo incorporados a eles, sentidos que jamais poderiam ser antecipados por seu autor ou por outros leitores e audiências. Novos autores e espectadores fazem conexões, eliminam ou superam barreiras, criam sentidos com base no seu conhecimento tácito do mundo em geral e das convenções literárias e artísticas em particular. Um espetáculo, seja de que tipo for, é sempre um convite para a construção de novos sentidos, que depende das questões que surgem a partir do nosso enquadramento cultural. Nesta coletânea, procuramos descobrir as questões que a própria obra, cada obra, tentava responder, em seu tempo e lugar, em nosso diálogo com a história. Nossa perspectiva presente sempre envolve uma relação com o passado, e, ao mesmo tempo, o passado só pode ser compreendido em termos da limitada perspectiva do presente. Assim, acreditamos que esta coletânea interessará não apenas aos especialistas em história antiga ou áreas correlatas das humanidades, mas também aos amantes do balé, da ópera e do cinema.

2. Conte-nos um pouco sobre as suas trajetórias profissionais, e de que forma ocorreu o processo de organização desta obra.

As análises de espetáculos que apresentamos neste livro foram concebidas a partir da experiência de seus autores em pesquisas diversas, cuja base metodológica gerou um curso de extensão universitária realizado na Universidade Federal Fluminense (UFF), nascido da iniciativa do Prof. Ciro Cardoso, com base em sua grande experiência teórica e prática na análise de espetáculos para fins de pesquisa historiográfica, e no qual todos os autores da coletânea ministraram uma ou duas aulas. A experiência em pesquisa e ensino de história do Prof. Ciro Cardoso foi, portanto, determinante. Em 1997, o Prof. Ciro lançou uma obra voltada à aplicação metodológica de análises semióticas aos estudos históricos, o livro Narrativa, Sentido, História¸ no qual apresenta e explica diversas vertentes metodológicas para uso de historiadores, com muitos exemplos, e o capítulo “História e Análise de Textos”, na coletânea Domínios da História. Tais exemplos são referências para quem lida com métodos semióticos na pesquisa e no ensino.
Nossa maior preocupação foi com a utilidade desta coletânea para estudantes, professores e pesquisadores, ao fornecer uma base de acesso segura à análise semiótica dos espetáculos músico-teatrais. Assim, dividimos o livro em três partes. A primeira parte traz desde uma síntese das fases sucessivas das concepções do teatro moderno e contemporâneo e do desenvolvimento da semiótica em geral até a semiótica do espetáculo em particular. Esta seção inclui um capítulo sobre o desenvolvimento do cinema como espetáculo e das especificidades da linguagem cinematográfica em relação a outras formas de espetáculos, e das trajetórias das teorias e análises do cinema, apresentando elementos para a análise do cinema de estrutura narrativa. A segunda parte traz exemplos de análise de espetáculos músico-teatrais, especificamente uma ópera – Orfeu e Eurídice, de Gluck - e duas versões do ballet Espártaco, a primeira de Khachaturian, escrita em 1954 e filmada em 1977, com o Corpo de Baile do Teatro Bolshoi, e a versão de Seregi (1968), filmada em 1990, com a companhia The Australian Ballet. A terceira parte traz exemplos de análise de três filmes: Cleópatra (DeMille, 1934), Júlio César (Burge, 1969) e Satyricon (Fellini, 1969). Optamos, portanto, por espetáculos e filmes e fácil acesso para o leitor, de distintas tendências e estilos, e que são, também, clássicos.

3. Quais as dificuldades maiores para a pesquisa no país? E de que forma esta se desenvolve atualmente na área?

            O aumento do interesse pela antiguidade e por temas vinculados, de um modo ou de outro, à antiguidade é notório no Brasil. De fato, o interesse pela antiguidade, em maior ou menor grau, nunca se extinguiu, mas, durante décadas, designadamente nas universidades, os estudos e os temas antiquistas foram praticamente marginalizados nos currículos, com base em visões e ações preconceituosas – intelectualmente fracas e enfraquecedoras, como sói acontecer – e, mesmo, reacionárias dos departamentos de ensino brasileiros. Pesquisadores e estudiosos de história antiga, mas também de filosofia, de arqueologia, de literatura, das línguas grega, latina etc., bem como uma nova percepção das recepções e ressignificações de temas e imagens da antiguidade em áreas como tão diversas como a psicanálise, a antropologia, as artes, a arquitetura, dentre outras, tiraram os estudos da antiguidade do ostracismo curricular e científico brasileiro e incrementaram o interesse das novas gerações. Atualmente, os estudos da antiguidade são uma das áreas mais criativas das ciências humanas. Por isso, preferimos pensar nas possibilidades da pesquisa sobre a antiguidade, pois as dificuldades que a área encontra não são muito diferentes das dificuldades encontradas por outras áreas do conhecimento. A história antiga, em particular, é uma disciplina acadêmi­ca versátil, capaz de combinar métodos solidamente estabelecidos com a abertura necessária a novas abor­dagens da cultura clássica e de suas tradições, o que é muito promissor no Brasil.

4. Qual interesse maior em publicar o livro? Quais as expectativas?
           
Nossa intenção premente é de contribuir para a pesquisa e o ensino da história, chamando a atenção para a importância dos clássicos para a cul­tura atual, a presença da antiguidade nos palcos e no cinema e as novas perspectivas que os espetáculos músico-teatrais podem trazer tanto para a pesquisa historiográfica quanto às ciências humanas em geral. Uma das nossas maiores finalidades é demonstrar o que pode resultar de uma abordagem como esta, visando à compreensão de nossas relações com o mun­do antigo.
Nas ciências humanas o en­sino não pode ser separado da pesquisa, e a análise dos espetáculos pode abrir novos caminhos para am­bos. Os espetáculos músico-teatrais e o cinema são cer­tamente bons meios para despertar a sensibilidade em relação ao passado, ao encenarem uma cena do passado ou da literatura antiga. Se a apreciação de nossa própria cultura — incluindo nossa cultura popular — pode ser feita mediante o exame das principais formas de arte visual, da dan­ça, da música, do teatro e do cinema, a inclusão da análise de espetáculos na pesquisa e nos currículos escolares já está plenamente justificada, e os aspectos científicos, educacionais e estéticos desta inclusão para pesquisadores, professores e estudantes só tendem a aumentar. Compreender nossas conexões com a antiguidade é um ótimo meio para a compreensão de nosso próprio mundo.