terça-feira, 11 de setembro de 2012

Os interesses que cercam uma mídia natimorta

Por Lilian Saback

Conflitos na TV digital brasileira, da jornalista e professora do departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, Patrícia Maurício, editado em parceira pelas editoras PUC-Rio e Apicuri, traz o registro e a análise de um importante momento do processo de comunicação no Brasil: a implantação do sistema de transmissão digital para a televisão aberta.  O livro é fruto da tese de doutoramento da autora, TV digital: conflitos no nascimento de uma nova mídia no Brasil, defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em março de 2011.
Anos de pesquisas na área de telecomunicações e informática, alguns anos de negociações entre o governo federal e os detentores de modelos digitais  internacionais, que ensaiavam ficar encobertos pelos interesses econômicos que regem o setor no país, estão devidamente relatados na obra. Sem fazer rodeios, Patrícia apresenta ao leitor, a partir de entrevistas, reportagens publicadas em jornais diários, assim como, também, com a comprovação da ausência do assunto na mídia, uma janela para a compreensão dos bastidores de uma disputa de “gigantes”.
O livro está dividido em três capítulos. Nos dois primeiros, sempre ancorada por teóricos contemporâneos, a autora resgata o percurso percorrido desde a criação da tecnologia digital, passando pelo debate em torno da possibilidade de democratização da comunicação com a chegada da nova mídia, a defesa dos interesses das Organizações Globo e, ainda, a assinatura do segundo decreto que estabelece o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre – SBTVD-T –, em 2006. Um documento que frustrou pesquisadores, que desenhavam um modelo totalmente brasileiro, e representantes dos movimentos sociais que lutam pela democratização da comunicação.
Ainda nesta etapa do livro, paralelo ao relato cronológico de todo o processo de implantação da TV Digital, Patrícia apresenta o inesperado: o fenômeno internet. O crescimento acelerado do universo virtual roubou a cena e os interesses na nova mídia. O descaso acabou por ser interessante para fabricantes de equipamentos e, principalmente, para as emissoras de televisão comerciais, que não queriam e não querem que a interatividade plena chegue à TV aberta. Desde o início os detentores da radiodifusão no país, através de lobistas, deixaram claro que ninguém poderia mexer no conteúdo produzido por eles.

“A ausência de regulação para a TV digital no Brasil não deveria causar espanto. Qualquer tentativa de regulação é classificada e desqualificada pelas Organizações Globo como censura e/ou tentativa de cercear a liberdade de expressão. Há inúmeros exemplos disso, como os ataques à tentativa de criar a Ancinav e o Conselho Federal de Jornalismo.” (p. 156/157)

Na última parte da obra, no terceiro capítulo e em sua conclusão, Patrícia defende a tese de que a implantação do padrão digital de televisão no Brasil é quase um remake dos primórdios da radiodifusão no país. Com autoridade e conhecimento sobre assunto, a professora de radiojornalismo e comunicação audiovisual remonta o processo de implantação do rádio no Brasil por Roquette-Pinto e todos os conflitos em torno da sustentação financeira do novo veículo. Uma dinâmica que comprometeu o objetivo de alguns de fazer do novo veículo um importante instrumento de educação e cultura.

“Os defensores do financiamento pela publicidade acabaram vencendo em 1932, quando o então presidente da República, Getúlio Vargas, autorizou a publicidade no rádio. No início do rádio existiam pessoas e empresas que viam o veículo como oportunidade de negócios e de lucro, enquanto outras o enxergavam como oportunidade de levar cultura à população. Podemos dizer que aparecia naquele momento, como na fase de implantação da TV digital, uma luta entre pessoas que defendiam o interesse público versus as que defendiam o interesse do mercado, mesmo com as diferenças de cada época.” (2012, p. 169)

        A pesquisa apresentada em Conflitos na TV digital brasileira registrou o nascimento e o fim precoce do sonho de democratização das comunicações com a TV Digital, sua multiplicação do número de canais e interatividade. Acabou por torná-la, como bem denominou a autora, uma “mídia natimorta”. Tudo porque ao fim da batalha venceu mais uma vez o plano de negócios que sustenta as TVs no Brasil desde 1950: a venda de comerciais. A interatividade nas mãos do telespectador, que um dia sonhou em produzir o seu “cardápio de programas” para ser assistido à hora que quiser, derruba esta dinâmica. Sendo assim, lhe resta uma TV de high definition e com uma interatividade praticamente inativa.
    Patrícia Maurício nos deu uma excelente referência bibliográfica para os cursos de comunicação, acostumados a ter que trabalhar com a história dos veículos de audiovisual contada pelos detentores do monopólio da radiodifusão brasileira. Fica o pedido e o desejo que ela continue atenta aos processos de comunicação no país e seus interesses sempre conflitantes.

Lilian Saback – Jornalista. Professora do Departamento de Comunicação da PUC-Rio. Pesquisadora do Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária (LECC/UFRJ).